segunda-feira, 5 de outubro de 2015

ARROZ DOCE

O que se passou me foi dito por uma avó, portanto não acrescentarei pontos fictícios nesse relato. Certo estou que se faria mais didático se me colorissem a tenra idade com aventuras de Narizinho ou Peter Pan, mas se uma temente a Deus, pouco supersticiosa, pretendeu expor-me este acontecimento naqueles dias, creio que, se o ouvisse hoje, não teria os cabelos eriçados de pavor como naquela época e, o meu leitor, talvez não chegasse a ter conhecimento da história. Lembro o dia, o mês, mas não lembro o ano. Poderia questionar Vó Mariana, que se acha ainda muito saudável, sobre o detalhe, entretanto imagino que o que lê deve estar curioso não com pormenores que não pesam na balança. Vó Mariana relatava o fato com tal fervor e suspense que fazia supor esconder-se atrás de seu magistério uma excelente contista. Vou até ocultar que possuíam uma dose de Rachel de Queiroz seus traços fisionômicos para ir direto ao assunto. Era um sétimo dia de agosto daquele ano mais ou menos remoto. Nem as ventanias da temporada serviam para deter a realização da festa na frente da igreja. A tempestade talvez impedisse, mas as beatas incluíam em suas rezas de oratório o pedido de não pingar uma gota sequer durante o período da quermesse, o que poderia deixar São José meio aborrecido. Tudo foi organizado com esmero na intenção da renda ser revertida à paróquia para a reforma da igreja, a mesma que me acolhe aos domingos para a missa e que já começa a descascar de novo. O leiloeiro era o de sempre. Vó Mariana relatou que não conheceu outro, o que a levava a pensar que não existia um leiloeiro magro. A banda permaneceria na banda de lá, uma laje sobre os mictórios enterrados. Banda sem o Realindo do trombone, falecido vítima de esquistossomose, ou doença do caramujo, ou barriga d’água, como queiram. Só espero que o Realindo não tenha levado Vó Mariana a mal quando ela asseverou que suas notas, ultimamente, faziam-se defuntas e fracas. Festança que se preze tem bandeirinhas de papel de seda tremulando nos varais e aquela também as tinha. Gritaria as prendas o leiloeiro para dar movimento à quermesse. Era daqueles de elevar pinto à categoria de peru recheado. A escolha das prendas concretizava-se na tarefa mais importante e coube o encargo para a dona Genoveva, cristã praticante, genitora de dona Mariana, minha avó, que era solteira na época dessa quermesse. E como já disse foge-me o ano exato. Minha bisavó Genoveva, protagonista dessa história, não tive o prazer de conhecer. Ocorreu que naquela antiga quermesse a bisa achou que os frangos morenos, as batatinhas crocantes, os pastéis e as mandiocas fritas douradas e até algumas leitoas assadas eram insuficientes para confirmar a excelência de seus dotes culinários e o mais importante: a sua ardorosa devoção aos acontecimentos paroquiais e ao santo padroeiro. Então decidiu a dedicada mulher preparar um tacho de arroz doce, a mesma iguaria que fez o padre Lourenço repetir a xícara, sempre com uma pitada de canela em pó, quando da visita à sua casa. Os pratos de doce ainda quentes, exalantes de aromático vapor, foram colocados sobre a mesa de madeira da varanda. A brisa que movimentava as avencas no entorno refrescaria os doces prometidos para o leilão da quermesse naquela noite. A bisa Genoveva pôs-se a cuidar de outros afazeres e voltou no momento em que abelhas começavam a girar sobre os doces. Para seu desapontamento, faltava um dos pratos. - Só pode ser traquinagem de pirralhos! Armou-se de um galho fino de jabuticabeira e saiu à procura do ladrão. Foi dar com ele escondido atrás do galinheiro lambendo o prato de ágata em flagrante delito. Deve ter entornado o doce com gana devido aos resquícios do caldo grudento nos dedos do moleque. - Tu me pagas, ladrãozinho duma figa! – pensou minha bisavó ao fitar o garoto com a vasilha na mão. Surpreendido o menino nem conseguiu escapar. Dona Genoveva segurou-o pelo braço. - Não me bate, dona Veva! As súplicas do moleque de nada adiantaram. As lambadas de vara comiam em suas pernas, mas respeitaram a barriga estufada. O menino esperneou e gritou feito os leitões no momento do sacrifício à causa paroquiana. Entretanto, custava ele pedir algo que não lhe seria negado? Olhos arregalados observaram a cena amoitados entre as bananeiras. Mas permaneceu quieto o vulto entre as folhagens, pois se fez algum ruído foi quando da correria para ver o que se passava ao filho. A dona Genoveva limpou o suor da testa e do buço e liberou o menino da coça. A bisavó tomou o prato limpo, atirou longe o galhinho de jabuticabeira e voltou com o seu coração vestido em arrependimento. A mãe do moleque era o vulto espreitado e foi ter com o filho no casebre em que moravam nas imediações da chácara de dona Genoveva. Todas as rezas do rosário às barras das vestes dos santos do oratório não serviram para aplacar a dor de consciência de minha bisavó. Criança é criança! O mais educado dos guris não se conteria em admirar o doce sem experimentá-lo. Debatia-se entre esses pensamentos que lhe enchiam de remorsos. Poderia ter levado a arte ao conhecimento dos responsáveis pelo pivete e jamais ter chegado àquele extremo. Em filhos dos outros não se bate. Mesmo naquele tempo as crianças tinham os seus direitos... A senhora Genoveva estava decidida a expor o caso à mãe do menino e pedir desculpas pelo ato impensado. Diria que estava tão movida pela vontade de ajudar a igreja que perdeu a cabeça. Cruzou o pasto, transpôs o riacho pela pinguela e chegou ao lavrador Rafael, pai do menino, que capinava o mandiocal à frente de seu rancho de pau a pique. - Boa tarde, Rafael! - Tarde, dona Veva. O que traz a senhora aqui? - Vim falar com a Carola. Ela se acha em casa? - A Carola tem saído todos os dias nessa horinha... - Pois tenha o obséquio, Rafael, de dizer que preciso muito falar com ela. Preciso pedir desculpas pela prensa que dei no teu pequeno outro dia... - Meu menino andou incomodando a senhora, dona Veva? Ara, sô... vou dar um tunda nesse moleque. – falou nervoso o lavrador. - Não foi nada, Rafael! Mesmo assim, faça-me o favor de dizer a Carola que estive aqui. - Vou falar, sim, dona Veva! - Ah, aproveita para falar pra Carola aparecer lá em casa quando quiser, Rafael. ...... Frisei que cabia mais a minha Vó Mariana um fardão de escritora do que um jaleco de mestra. Pois bem, não retiro o dito. Quisera ter eu o dom de contar casos como ela. Não balbuciava ao descrever que em um 13 de agosto, dona Genoveva recebia a visita da vizinha Carola. Genoveva estava na tarefa de regar as samambaias e as roseiras do seu jardim e enxugando as mãos no avental foi atender a visitante. Demonstrou satisfação em rever a vizinha porque viu a oportunidade de se desculpar pelo episódio ocorrido dias antes. Educadamente conduziu Carola para o interior da casa. - Espero que não tenha se zangado comigo pela prensa no teu caçula... – lembrou a senhora. - Não fiz conta daquilo, dona Veva. Moleque arteiro sossega com palmada mesmo... Genoveva foi à cozinha e arrebatou o bule da chapa do fogão à lenha e serviu café à visita. - Queria que não arreparasse, mas trouxe uma coisa para a senhora... Carola ergueu o pano de prato que cobria o conteúdo da vasilha que carregava. - É arroz doce! – exclamou a bisa Genoveva. - Mas não é tão saboroso quanto o da senhora. – disse Carola com humildade. Dona Genoveva percebeu a ironia do destino, mas pensou que o doce que quase azedou uma convivência, poderia muito bem servir para apaziguar a situação. Enquanto a visita tomava café, para não fazer desfeita, Genoveva pegou um pratinho para experimentar o presente. Ingeriu a primeira porção do doce, elogiou a doceira. E até convidou a vizinha para colaborar com as quermesses da paróquia. - Está uma delícia, Carola... ..... Vó Mariana conta que a desconfiança surgiu tempos depois de minha bisavó adoecer. Sem causas para a enfermidade da bisa Genoveva, os mais próximos a questionavam de todas as formas até que ouviram dela a história do arroz doce. Não poderiam nem mesmo questionar se, por vingança, Carola havia colocado no doce algum veneno de ação lenta. Os vizinhos mudaram-se e nunca mais se teve notícias dele. O fato é que a bisavó foi definhando até morrer. O pavor tomou conta dos familiares quando nos últimos dias da bisavó encontraram sob a pele dela dezenas de agulhas, umas pequenas, outras maiores. O fato ficou sem explicação, embora muitos o ligaram ao caso do arroz doce. Estudiosos hoje explicam fatos como esse afirmando que são as pessoas que espetam agulhas no próprio corpo. Será que minha bisavó nunca se desculpou pelo fato de surrar o menino da vizinha e penitenciava-se daquela forma? Vai saber... Só sei que não foi uma história inventada pela minha Vó Mariana. Outros da família lembram o fato... A menos que minha avó, como já disse, uma excelente contadora oral de histórias tenha feito com que todos acreditassem em algo saído de sua fértil imaginação.

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