sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

"A TEMPESTADE" E A DERRADEIRA DEFESA DO DIREITO DA REALEZA

Marcos Diamantino



Se os grandes navegadores enfrentaram tempestades, Shakespeare legou ao mundo a sua “A Tempestade”, inspirada, em parte, nas obras relacionadas aos descobridores do Novo Mundo. Alguma semelhança com a América tem a ilha na qual Próspero e sua filha Miranda aportaram, depois de ser destituído do Ducado de Milão, pelo próprio irmão Antonio. Próspero pode ter encontrado nos livros os poderes mágicos com que subjuga Calibã, filho da bruxa Sicorax, que um dia dominou a ilha. Ao libertar o espírito Ariel do feitiço lançado por Sicorax, faz dele um serviçal. Com a ajuda de Ariel, espírito do mar, Próspero atrai para a ilha, o irmão usurpador, o Rei de Nápoles, outros nobres e marinheiros náufragos. Com isso, busca vingar-se da conspiração sofrida e restituir o ducado de Milão.
Segundo Fernando Rodrigues, em “A Tempestade e a Questão Colonial”, teóricos consideram a peça de Shakespeare um libelo em favor do colonialismo inglês. Próspero seria o colonizador enquanto a Calibã coube o papel de colonizado explorado. Shakespeare teria construído “A Tempestade” tendo como fonte textos voltados ao colonialismo, entre eles, o ensaio “Dos Canibais”, de Montaigne. Para Rodrigues, o que faria com que Shakespeare tomasse partido dos colonizadores foi o fato de descrever Calibã, nativo da ilha, como um vilão. O professor de Teatro da UnB, Marcus Mota, em “Calibã ou as Metáforas de Próspero” vê Calibã como “um anjo da rebelião, mas de uma rebelião desqualificada”. Seria uma liderança entre os colonizados, mas um poder enfraquecido pelas artimanhas de Próspero que consegue manter Calibã e Ariel desunidos e controlados.
No contexto da elaboração de “A Tempestade” é possível relacionar também duas obras conhecidas na Europa na época de Shakespeare. A primeira delas é “O Príncipe”, de Maquiavel. Nessa obra estão estratégias de governo que possibilitariam a Próspero dominar os habitantes da ilha. Um exemplo disso é o tratamento cruel dado a Calibã por Próspero. A justificativa desse modo de agir está na página 149 de “O Príncipe” (Tecnoprint, 1981), em que, segundo Maquiavel, “é muito mais seguro ser temido que amado”. Outra obra marcante do período é “A Utopia”, de Thomas Morus. A Utopia é uma ilha imaginada por Morus onde se estabelece a sociedade ideal, ou um “comunismo real”, segundo o Professor de Direito da USP, Mauro Brandão Lopes. É claro que o ideal utópico não parte de Próspero, mas de Gonzalo, que um dia salvou o Duque de Milão. No ato II de “A Tempestade”, Gonzalo imagina um governo suprimindo “ricos e pobres e os serviços, contratos, sucessões, questões de terra, demarcações”. Trata-se, no entanto, de mais uma questão periférica.
Além de aludir ao colonialismo, a peça de Shakespeare teria propósitos mais contundentes segundo outros teóricos. De acordo com Fernando Rodrigues, citando D.S. Kastan, em “The Duke of Milan”, há teorias que defendem as relações dinásticas como foco central da peça. O argumento de Kastan seria o de que o público a quem se destinaria a peça estaria “mais preocupado com os problemas dinásticos na Europa, em particular na Inglaterra, do que com os empreendimentos coloniais”.
Rodrigues cita que a peça foi encenada na corte, em 1613, durante as festividades do casamento da filha do Rei, Elizabeth, com Frederick, o Eleitor Palatino. Em “A Tempestade”, o par romântico é vivido pela filha de Próspero, Miranda, e o filho do Rei de Nápoles, Ferdinando. E nada é melhor para fortalecer governos do que união de famílias poderosas. Talvez para evitar melindres com a realeza inglesa, a quem a peça foi oferecida, utilizou-se o universo da nobreza italiana. De acordo com Rodrigues, uma fonte segura de Shakespeare foi “History of Italy” (1549), de William Thomas, “onde se menciona um duque de Milão, chamado Próspero, alijado do poder, e que consegue, mais tarde, reaver seu trono”.
Em “Ricardo III”, um tirano alçado, pelo sangue, à condição de monarca, encontrou trágico fim. Em “A Tempestade”, Próspero que teve o trono usurpado reconquista o poder. Há uma tendência na obra de Shakespeare em relacionar a realeza, por direito dinástico, a preceitos morais. Um bem que deve ser restituído quando tomado à força. Próspero, mesmo tendo construído um Novo Mundo, sendo o senhor dele, quis de volta o trono de Milão e, segundo os teóricos, isso “não é uma atitude de colonizador”. Em “A Tempestade”, Shakespeare talvez tenha feito a sua última defesa das pretensas virtudes da realeza.

Referências:

Shakespeare, William, “A Tempestade”, texto original
Mota, Marcus, “Calibã ou as Metáforas de Próspero”, artigo Curso Teatro UAB-UnB
Rodrigues, Fernando, “A Tempestade e a Questão Colonial”, artigo Curso Teatro UAB-UnB
Machiavelli, Nicolo, “O Príncipe”, Editora Tecnoprint, 1981
Morus, Thomas, “A Utopia”, Editora Tecnoprint, 1981
Mota, Marcus, Apresentação, Prof. Teatro UAB-UnB

"RICARDO III" E O SENTIDO MORALIZADOR DE SHAKESPEARE

Marcos Diamantino



Quando o drama histórico Ricardo III, do inglês William Shakespeare, foi escrito em 1590, o italiano Nicolau Maquiavel já havia publicado a sua principal obra, O Príncipe, que data de 1532. No capítulo VIII, Maquiavel teoriza sobre aqueles que alcançaram o principado pelo crime. Segundo ele, para que atos tirânicos possam gerar confiança nos homens, “ao apoderar-se de um Estado, o conquistador deve determinar as injúrias que precisa levar a efeito, e executá-las todas de uma vez” (O Príncipe, pag. 93). Caso contrário, explica Maquiavel, o soberano “tem sempre a necessidade de estar com a faca na mão e não poderá confiar em seus súditos” (O Príncipe, pag. 94). Como é possível intuir, o texto de Maquiavel serviu não apenas para Shakespeare construir a personalidade teatral de Ricardo III, como também para explicar a derrocada do soberano inglês.
Para o teórico Alexandre Martins Vianna, em “A Desfiguração do Corpo Político em Ricardo III”, o perfil do personagem é calcado em um vilão bíblico: Herodes. Vale destacar que não só o verdadeiro Ricardo III , assim como o drama teatral baseado na vida dele e até a realidade do dramaturgo Shakespeare orbitavam na era da Cristandade. Shakespeare teria construído um drama sobre antíteses bíblicas: Ricardo III com suas maldades seria Herodes. Ao final da peça, o virtuoso vencedor, Conde de Richmond, segundo Martins Viana, seria uma alusão a Jesus, o Salvador. Seria possível até dizer que, em síntese, trata-se de uma visão maniqueísta do drama histórico: o mal e o bem facilmente identificáveis e, no caso, ocorrendo a supremacia do bem. Para Martins Viana, a vitória do Conde Richmond corresponderia à “promessa messiânica de um nova era – o triunfo de ‘Cristo’ sobre a morte”.
Em se tratando de Shakespeare, no entanto, nada pode parecer tão simples. Mesmo porque, como sugere Martins Viana, a vitória de Richmond não representou a vitória do povo. Embora servisse de modelo de “boa consciência”, o rival era também um potencial herdeiro do trono inglês. E diz a história com “H” que, ao assumir o trono, Richmond mandou eliminar muitos desafetos.
Até o 3º. Ato, Ricardo, Conde de Gloucester, consciente de que não está na linha de frente entre os pretendentes ao trono inglês, devido a origem dinástica, busca tomar o poder engendrando uma série de conspirações palacianas, traições e crimes sangrentos. “Elevado pelo sangue e pelo sangue mantido” é a frase que identificaria a estratégia do protagonista. No entanto, quando o mal, devido força da retórica persuasiva de Ricardo III, chega a ser confundido com o bem, emerge nesse ponto, através do paradoxo, o poder do texto de Shakespeare. É claro que, com a ascensão, o tirano coloca-se na posição de lobo diante do cordeiro. Mas, em um diálogo, ele não desiste enquanto não encontra argumentos que possam, por algum viés, justificar seus atos. Em um exemplo disso, após mandar matar os filhos de Isabel, os verdadeiros herdeiros ao trono inglês, Ricardo III propõe à mãe enlutada que desposando a filha dela estaria restituindo a soberania à família. Segundo o professor da UnB, Marcus Mota, descobrir-se sedutor era para Ricardo III o poder supremo. “Quando o soberano consegue transformar Ana, de viúva rancorosa a amante do homem que matou seu marido, descobre que poderia conseguir tudo”, cita Mota. Por medo ou interesse, todos obedecem a Ricardo III. Mas, ao conquistar o trono, continua exercendo um reinado de terror com traições e promessas não cumpridas, caindo no erro proposto por Maquiavel. Ao não conseguir dar um basta à sua sede de poder e vingança, perde a confiança até dos seus súditos.
A ascensão criminosa/demoníaca de Ricardo, enquanto Duque de Gloucester, proposta por Shakeaspeare, é analisada por Martins Viana como resposta aos governos anteriores de Henrique VI, considerado um “monarca angélico” e ao governo de Eduardo IV, considerado “lascivo e soberbo”. A derrota imposta ao tirano supremo Ricardo III pelo conquistador Conde de Richmond, embora o segundo representasse o Cristo Salvador, seria a vitória do meio-termo. E aí, mais uma vez, conceitos de Maquiavel são usados pelo autor inglês para delinear o soberano ideal. Nesse sentido, empregando vários paradoxos, a peça Ricardo III é moralizadora, quando leva a crer na dialética da busca da perfeição moral a partir de erros.


Referências:

Shakespeare, William, Ricardo III, texto completo

Machiavelli, Nícolo, O Príncipe, Ediouro, 1982

Maquiavel, Nicolau, Biografia e obras, Wikipédia

Shakeaspera, William, Biografia e obras, Wikipédia

Vianna, Alexandre Martins, “A Desfiguração do Corpo Político de Ricardo III”, HT1 UAB-UnB

Mota, Marcus, UAB-UnB

"LISÍSTRATA" E A SALVAÇÃO PELO SEXO

Marcos Diamantino



Para tentarmos compreender, nas entrelinhas, a comédia “Lisístrata”, de Aristófanes, convém conhecer o contexto social e político da época em que a peça foi criada: a Atenas do ano 411 a. C. Nesse período estava em curso a Guerra do Peloponeso que, segundo a Professora e Historiadora Margarida Maria de Carvalho, no artigo “A Mulher na Comédia Antiga: a Lisístrata de Aristófanes”, era “considerada como uma guerra entre dois sistemas divergentes: o sistema democrático de Atenas versus o Sistema Oligárquico de Esparta”. A autora afirma que Aristófanes era um crítico contumaz dessa guerra e, portanto, da democracia que permitia tal conflito. A teórica Giselle Moreira da Mata, no artigo “Entre Risos e Lágrimas: uma Análise das Personagens Femininas Atenienses na Obra de Aristófanes”, amplia essa aludida visão crítica de Aristófanes ao citar Freire (1985) para quem o comediógrafo era conservador ao revelar “hostilidade às inovações e a todos os homens responsáveis por elas”. Giselle recorre à contribuição do teórico Acker (2007), segundo o qual Aristófanes “foi defensor do passado de Atenas, dos valores democráticos tradicionais, das virtudes cívicas e da solidariedade social”, usando para a manutenção dessa tradição a sátira violenta.
“Lisístrata” foi escrita no período democrático de liberdade ateniense sendo aceitável a crítica aos problemas sociais e políticos. Por isso faz parte de um subgênero chamado de Comédia Antiga. Após a derrota sofrida por Atenas na guerra, surge a Comédia Nova cujas críticas, de acordo com a autora Giselle Moreira da Mata, caracterizam-se mais por “intrigas privadas e íntimas”. “Lisistrata” nesse sentido pode ser considerada a tentativa de Aristófanes, através da dramaturgia, de evitar a derrocada da sociedade ateniense anterior, que considerava ideal.
A comédia, assim como o teatro grego, nascendo da adoração a Dioniso, deus do vinho e das festas, com destaque para as manifestações falocêntricas, era um gênero muito popular na Grécia. Considerado, o principal comediógrafo antigo, Aristófanes poderia supor que “Lisístrata”, dada à sua penetração haveria de causar um clamor popular, revertendo as ameaças à democracia ateniense.
Como a sexualidade é fator determinante na cultura universal e sempre desperta o interesse dos povos, desenhou-se o tema propício para uma peça de grande apelo popular. “Lisístrata” apresenta como conflito a greve de sexo proposta por esposas legítimas numa espécie de chantagem para obrigar os maridos a terminarem com a guerra. Para a autora Giselle Mata, outros fatores de atração da peça são “os recursos cômicos: situações ridículas, caricaturas de personagens reais, ironias, trocadilhos e mal-entendidos”. As frases de duplo sentido permeiam todo o texto. Numa cena, o comissário sugere a um artesão que passe em sua casa para alargar a sandália da esposa sugerindo um dupla conotação. As cenas episódicas, independentes, são também uma estratégia para enriquecer o texto.
O Professor Marcos Mota, da disciplina de Teatro da UnB, ressalta, no entanto, os objetivos sérios por trás das peças cômicas. “São, na verdade, paratragédias, ou seja, peças cômicas que se organizam em função da tragédia”.
Os estudos propostos pelos teóricos sobre a condição feminina na Grécia Antiga colocam em dúvida o objetivo de levar a sociedade ateniense a discutir o papel da mulher. A autora Giselle da Mata cita Nikos A. Vrissintzis, autor de “Amor, Sexo e Casamento na Grécia Antiga”, para quem a mulher só adquiria alguma importância através do casamento. Fora do ambiente doméstico, segundo Nikos, quase tudo era proibido para a “esposa legítima”, como participar da política, da cultura e da vida social. Havia restrições até no ambiente familiar, sendo proibido às mulheres, fazer refeições à mesa com o marido. Além disso, havia na Grécia antiga, outras classes de mulheres que não fariam greve de sexo com seus maridos pelo simples fato de não tê-los: eram as concubinas, as cortesãs, as prostitutas e as escravas.
Na verdade, “Lisistrata” critica a todos, inclusive os tragediógrafos. Numa cena, um velho ironiza as tragédias quando diz: - “Não há ninguém mais inteligente que os autores de tragédias. Eles é que têm razão. Pode haver criatura mais sem vergonha que a mulher?”.
A hipótese de que “Lisistrata” poderia contribuir para diminuir a submissão da mulher iria contra a crença de Aristófanes de que a sociedade ideal é a do passado. Os compositores Chico Buarque de Holanda e Augusto Boal, com a letra “Mulheres de Atenas” tornaram popular, através de uma música, o perfil submisso da mulher ateniense: “mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ geram pros seus maridos, os novos filhos de Atenas/ Elas não tem gosto ou vontade / nem defeito nem qualidade / tem medo apenas”.
O conceito de salvação através do sexo feminino, presente em “Lisistrata”, aparece sob outra ótica na música “Geni e o Zepelin”, da “Ópera do Malandro”, baseada na “Ópera dos 3 Vinténs”, de Bertolt Brecht. A composição de Chico Buarque alude à mulher de comportamento sexual livre, criticada pela sociedade, e que é obrigada a se entregar sexualmente a um conquistador para salvar a cidade. Antes de se voltar novamente contra Geni, a moralista e hipócrita sociedade a incentiva a servir ao conquistador: “vai com ele, vai Geni / você pode nos salvar / você vai nos redimir / você dá pra qualquer um / bendita Geni”.
Quando em “Lisistrata”, usa-se a sexualidade feminina, mesmo no caso da greve de sexo, para a obtenção da Paz, amplia-se, de certa forma, o preconceito de mulher como objeto sexual. Hipoteticamente, a mulher poderia obter os mesmos resultados se participasse da política ateniense, por exemplo. É possível concluir que, Aristófanes, em busca de seus objetivos, acaba, de fato, explorando a mulher e sua condição submissa na Grécia antiga.

"AS BACANTES": O TRIUNFO DO DEUS NATUREZA

“Sabedoria não é sensatez” – antiestrofe 1ª.
Marcos Diamantino



Embora “As Bacantes”, de Eurípides, encenada em 405 a. C., apresente diferenciais, em vários aspectos, em relação às peças de seu tempo, mantém as características próprias da tragédia, sendo a principal delas a submissão do homem aos desejos divinos. Também nesse caso, convém lembrar que, no período aludido, a sociedade grega estava organizada no cosmopolitismo em detrimento da vida agrária. Tempo em que a filosofia ganhava espaço na missão de explicar o sentido da vida e, por conseguinte, há o arrefecimento na crença nos antigos deuses.
Em “Bacas: a Construção do Dioniso Ateniense”, a professora Mestra em História, Giselle Moreira da Mata, cita que a peça ajuda “a observar acontecimentos e sensibilidades do homem grego, especialmente o ateniense do século V a.C”. Ou seja, por trás do acontecimento literário, é possível observar como procedia o grego em termos de cultura, política, economia e sociedade. Eurípides, em “As Bacantes” poderia estar representando um homem que era o resultado de novos conhecimentos.
O conflito existente em “As Bacantes” é simplificado por Thiago Alessander Mascagni Amparo, em sua tese de doutorado pela Unesp “O Espaço em Cena e sua Profundidade: as Bacantes”. Ao citar que “no diálogo entre Penteu e Dioniso, evidenciam-se os dois pólos da peça: o herói que reage à divindade e a vontade do deus de se manifestar”, o autor aponta a principal das antíteses presentes na obra. Dioniso é filho de Zeus com uma humana e pretende provar que não é um semideus, mas um deus. Penteu é o soberano que não consegue entender que um deus pode “escrever certo por linhas tortas” e combate o que lhe parece transgressão às tradições tebanas pelo exagero ao culto ao deus Baco, o deus do vinho, inspirador de Dioniso. O choque entre oposições irredutíveis provoca a ruína do herói e a comprovação de que na tragédia grega prevalecem os desígnios divinos.
Do ponto de vista conceitual, “As Bacantes” destaca-se por utilizar, pela primeira vez, um deus meio-humano, forjado em contradições e determinado a afirmar sua condição divina. As contradições segundo Maria de Fátima Sousa Silva, em “Bacantes de Eurípides: Símbolos de Confronto”, estão presentes em toda a peça. São várias as antíteses: “divino e humano, natural e social, racional e emocional, feminino e masculino, grego e bárbaro”. A peça inova ao colocar um deus dialogando com o coro e demais personagens, possivelmente, algo só permitido a um semideus em situação de auto-afirmação.
Essa tragédia diferencia-se por conter traços de um novo gênero literário que se avizinha: a comédia, e que pode também representar as características de uma nova sociedade grega. Maria de Fátima Sousa Silva conceitua a comédia grega como o deus “que sujeita, sob o jogo das insígnias, os cidadãos à paródia, numa subversão dos estatutos, que podem ter uma função apotropaica ou catártica”. Ao submeter Penteu, Dioniso faz com que o soberano conheça a humilhação, convencendo-o a usar trajes femininos se quiser conhecer o universo das Bacantes, sacerdotisas do deus Baco, fiéis a Dioniso. Diz Dioniso: “quero fazer dele, perante os Tebanos, motivo de troça, levá-lo pela cidade, assim, vestido de mulher, expô-lo perante aqueles que dantes lhe temiam as ameaças”. A morte de Penteu pelas mãos da própria mãe, Agave, que estava possuída pelos poderes descomunais das Bacantes, era prevista. E concluiu-se para provar não apenas a superioridade do poder divino sobre os homens, mas a condição divina de Dioniso.
Eurípides utiliza um deus telúrico em “As Bacantes”. Segundo Maria de Fátima Souza Silva, Dioniso está ligado a um conjunto de símbolos animais e vegetais. É o deus que tem “na natureza o seu reino. O viço e a fertilidade parecem ser o traço em todos os elementos que o decoram”. Ao utilizar um deus com supremacia de símbolos telúricos, Eurípides pode querer mostrar a força da natureza que, ao mesmo tempo, subjuga o homem e lhe dá elementos para a vida em liberdade. Os campos abertos entram em oposição à reclusão doméstica representada pelo palácio de Penteu. O chamado enthousiasmo provocado pela sensação de liberdade, na peça causado também pela vontade divina, provoca um frenesi nas mulheres de Tebas que buscam se libertar de suas prisões reais e interiores. Numa época em que a crença nos deuses diminuia, Eurípides, com “As Bacantes”, poderia querer transmitir, na verdade, a sua crença no deus Natureza.

ATUALIDADE DE "ÉDIPO REI", DE SÓFOCLES

Marcos Diamantino


A tragédia “Édipo Rei”, de Sófocles, escrita há 2.500 anos, continua impactando o leitor-espectador, não apenas pela força dos conflitos pertinentes à história desse mito grego, como também pela visão humana com que o tema é abordado pelo autor. Sabemos que a tragédia, primeiro gênero literário do Teatro Grego, caracteriza-se pelo suceder de tensões até a catarse, ou seja, a purificação de sentimentos. Um dos pontos abordados quando se trata de discutir a atualidade da tragédia é destacar a investigação profunda que o texto grego faz da condição humana havendo a identificação com o leitor-espectador. No caso de “Édipo Rei”, a máxima “Conhece-te a ti mesmo”, poderia se apresentar como único antídoto à tragédia prevista pelos oráculos. O desconhecimento, no que se refere ao significado da própria existência, é uma questão que também aflige o homem atual e o aproxima da tragédia edipiana.
Em “Tradução de Teatro Grego: Édipo Rei, de Sófocles”, Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, considera o texto sofocliano: “labiríntico, paradoxal, cruzado e ambívio, entretanto plenamente alcançável e até íntimo no que se refere a nossa humanidade”. A forma com que Sófocles verbaliza os sentimentos externados pelo protagonista diante de seu imenso drama atinge o receptor como angústias possíveis dentro da condição humana e portanto absorventes. Embora Romilly (1998), acerca de Édipo Rei, conclua que “é somente o triunfo de um destino que os deuses haviam anunciado, e que o homem não conseguiu evitar”, há de se destacar que, no período da construção dessa peça, a filosofia já havia contribuído para a diminuição da crença nos deuses, o que explicaria o traço marcante da investigação da alma humana presente no texto.
Retomando Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, a autora defende que Sófocles permite múltiplas visões para seja interpretado “por um único viés”. Embora a força dos conflitos originais do mito grego sustente o texto, há subsídios intrínsecos que levam o espectador a outras leituras. E isso é evidenciado ao se estudar o original grego. Através das palavras utilizadas, uma das leituras possíveis é, segundo Barbosa “a metáfora da terra: desdobrada em semeador, semente, árvore, fruto e ceifa, praga e peste”. O termo mãe, de acordo com a autora, pode se ligar a Jocasta, mãe-esposa de Édipo, como também pode representar a terra, que fecundada com a semente gera plantas e frutos. As pragas da lavoura e as maldições poderiam se relacionar nesse sentido. Mesmo com o desenvolvimento da pólis, cidade-estado, a cultura agrária influenciava a sociedade grega na época de Sófocles.
Outro ponto a ser observado nas tragédias, além da diversidade de interpretações, é o problema dos lapsos nos textos gregos que são preenchidos por estudiosos, o que acaba influenciando na tradução. O texto estudado foi traduzido por Estela dos Santos Abreu, resultando numa linguagem direta, ritmada e de fácil compreensão. Um problema no Brasil é a dificuldade de acesso aos textos gregos originais. As traduções são feitas a partir de traduções em outras línguas. Percebe-se que a tradutora buscou fazer uma adaptação que evitou os rebuscamentos da palavra erudita tornando o texto mais compreensível dentro do sentido da obra. Decisão coerente, afinal o desafio do tradutor é manter o texto tão popular hoje quanto foi há 2.500 anos, quando foi apresentado pela primeira vez, em praça pública. Mesmo assim, ao lembrarmos que existem lacunas no texto é de se supor que outras vertentes de interpretação foram irremediavelmente perdidas.
A atualidade do texto o leva a ser encenado nos palcos pelo mundo e até mesmo suscita a sua adequação a outras mídias. Algumas delas, no entanto, exigem recriação, como no caso de adaptações para TV. Gizelle Kaminski Corso, mestre em literatura pela UNESP, relata adaptação de “Édipo Rei” para a TV feita por Gianfrancesco Guarnieri e Fernando Peixoto. A recriação, nesse caso, fez com que o universo grego fosse transplantado para o ambiente rural brasileiro. E a mudança é também de ritmo, uma vez que o meio TV exige ação ininterrupta para manter a atenção do espectador. Interrupção somente na pausa para o comercial e aí o autor deve criar uma problemática que se revolva no bloco seguinte para que o controle remoto não seja acionado.
Mesmo considerando as muitas recriações acerca da obra, reescrita incontáveis vezes, numa espécie de Wiki ao longo de 2.500 anos, o que se percebe é que “Édipo Rei” mantém-se como peça fundamental na literatura universal. Possivelmente, pelo que oferece de melhor ao unir o mitológico e o humano.

SETE CONTRA TEBAS: A TRAGÉDIA A SERVIÇO DA ARISTOCRACIA

Marcos Diamantino


A peça teatral Sete contra Tebas, de Ésquilo, apresentada pela primeira vez em 467 a.C., faz parte, segundo o site WWW.greciaantiga.org , de uma tetralogia Laio, Édipo, Sete contra Tebas, que são tragédias , e A Esfinge, drama satírico. As quatro peças, sustenta o site, remetem à lenda dos labdácias, família a que, de acordo com a mitologia grega, pertenceu Édipo. O conflito da tragédia estudada é entre os irmãos Etéocles e Polinices, filhos de Édipo. Após descobrirem que eram o resultado da união incestuosa de Édipo, que desposou a própria mãe Jocasta, Etéocles e Polinices desprezaram o pai que foi banido de Tebas. Antes de morrer, Édipo teria lançado uma maldição sobre os dois filhos segundo a qual ambos “se tornariam inimigos e terminariam um matando o outro”. Etéocles e Polinices haviam combinado alternarem-se no trono de Tebas. Etéocles, no entanto, não honrou o compromisso expulsando o irmão da cidade. Polinices uniu-se a exércitos inimigos de Tebas e o cerco que sete exércitos fazem à cidade dominada pelo Rei Etéocles torna-se o tema central da peça de Ésquilo.
Convém ressaltar que, na época em que a peça foi apresentada, a sociedade grega já havia passado da transição do genos arcaico (regido pela família) para a polis clássica (regido pela cidade-estado), conforme apontam Souza e Rocha em “O Teatro e a Democracia na Grécia Antiga” (Revista de História e Estudos Culturais). São, segundo os autores, “transformações na forma de viver e de administrar a comunidade”. Antigos preceitos religiosos que norteavam a vida do homem e colaboravam na organização social foram abandonados. Os tempos homéricos, numa referência a Homero (Séc. XII e IX a.C), suposto autor de Ilíada e Odisséia, já não satisfaziam aos anseios do povo grego. Surge então a tragédia com sua “forma educativa, adotada pelos legisladores da cidade-estado como instrumento para ajudar o cidadão a viver e a administrar a polis”.
Sete contra Tebas é uma peça exemplar da tragédia ao manter o determinismo dramático desse gênero teatral grego. Marcus Motta (UAB-UnB), em sua análise de textos teatrais mostra que características da tragédia são a impossibilidade de acordo e a irreversibilidade do destino das personagens. Na tragédia grega, os deuses definem o destino dos homens. No conteúdo temático, Sete contra Tebas, mantém todas essas características. Etéocles, o protagonista, é o Rei de Tebas, cidade prestes a ser invadida pelos exércitos inimigos, um deles comandado por seu irmão Polinices. Etéocles discursa para a sua população na tentativa de organizar a defesa dos portais de Tebas. Surge então um conflito interno talvez maior que o perigo externo: motivar o próprio povo a defender a cidade. Como reagiria o cidadão? Quem de fato merecia apoio, uma vez que era iminente uma batalha fratricida? E os Deuses? Como suplicar pela ajuda deles se Laio, avô de Etéocles , havia desobedecido os desígnios divinos, assim como Édipo, seu pai e Jocasta, sua mãe. A peça, por inteiro, é uma batalha íntima entre Etéocles e o coro, que, de certa forma, representa o povo de Tebas.
Marcus Mota, destaca que Sete contra Tebas, do ponto de vista estrutural, altera “os parâmetros de composição, realização de espetáculos audiovisuais”. Segundo ele, trata-se de uma obra dramático-musical, sendo concebida “como roteiro de representações que demonstra as opções de Ésquilo no enfrentamento da concepção e realização de peças vinculadas: a tetralogia”. Para o estudioso da tragédia, em Sete contra Tebas, os encontros são verbo-musicais, em que um grupo fala e outro canta. Do ponto de vista do cenário, o texto cuida de levar o público a construir mentalmente a cidadela composta de sete portais que são os vãos entre as estátuas dos deuses citados. O site WWW.greciaantiga.org , no entanto, alega, que em Sete contra Tebas, pela primeira vez, utilizou-se uma pintura como fundo de cenário.
Mas, sem dúvida, um dos pontos altos dessa peça é o texto de Ésquilo. O texto faz com que o leitor se sinta como parte da cidadela prestes a ser invadida. O leitor imagina os portais à sua volta em que, a qualquer momento, podem surgir guerreiros sedentos de sangue. Os sons dos tambores, dos gritos, das lamentações, do tinir dos metais das espadas, são elementos que elevam a tensão do público a cada instante. Sete contra Tebas contém um clima de suspense, pavor e medo, não superado pelas principais obras contemporâneas do gênero.
O mito de Édipo e Jocasta rendeu muitos argumentos na literatura e na dramaturgia universais. Nos anos 80, do século XX, o mito chegou a ser tema de uma telenovela da Rede Globo de Televisão, Mandala, em que o autor mantinha até mesmo os nomes originais das personagens. Naquela época, o mito, levado a um meio de comunicação de massa, a TV, mesmo através de um folhetim, gerou impacto e, de alguma forma, levou à descoberta dos mitos gregos. Se mudou algo na sociedade, não há elementos para afirmar. Mas, a utilização dos mitos gregos naquela telenovela, com certeza, teve um peso dramático e de originalidade, que não acompanhamos nas produções televisivas atuais. É a força do mito.

sábado, 17 de dezembro de 2011

O REFERENCIAL NOS GIBIS DE MAURÍCIO DE SOUZA

Marcos Valério Diamantino
Aluno de Oficinas Midiáticas, Artes Visuais UAB-UnB, Pólo Barretos, SP


RESUMO
Esse artigo trata de fazer uma reflexão sobre a conveniência da utilização das Histórias em Quadrinhos da Turma da Mônica, produzidas por Mauricio de Souza, na disciplina de Artes Visuais, no ensino fundamental. O texto fundamenta-se em pesquisas sobre as prováveis influências de outros autores na constituição da obra de Mauricio de Souza e na reflexão sobre pertinência do aproveitamento dessas HQs em sala de aula. A pesquisa feita através de material impresso e virtual, constante na Internet, procurou fazer uma análise crítica não apenas acerca do caráter visual, mas também de conteúdo, após o cruzamento de opiniões expressas em artigos, revistas e reportagens. Como o ensino-aprendizagem de Artes Visuais é dinâmico, e em face da proposta de trabalhar nessa disciplina com Histórias em Quadrinhos, o presente trabalho busca uma análise criteriosa desse material tendo em vista que não foi produzido especificamente para fins educativos.

PALAVRAS-CHAVE: Artes Visuais. Ensino Fundamental. Turma da Mônica.

O presente artigo busca realizar um levantamento crítico acerca da obra de Mauricio de Sousa, especificamente das Histórias em Quadrinhos da Turma da Mônica, e da conveniência de se utilizar esse material em aulas de Artes Visuais, no ensino fundamental.
Mauricio de Souza nasceu em Santa Isabel, cidade paulista, em 27 de outubro de 1935. Viveu, no entanto, parte de sua infância em Mogi das Cruzes, SP. Desde criança sentiu-se atraído pelas Artes Visuais, notadamente as Histórias em Quadrinhos. Mudou-se para a capital paulista aos 19 anos e trabalhou, durante 5 anos, como repórter policial do jornal Folha da Manhã, atual Folha de São Paulo.
O primeiro personagem criado por Mauricio de Sousa foi um cãozinho azul chamado Bidu cujas aventuras passaram a ser publicadas em tiras semanais na Folha da Manhã. Bidu nasceu em 1959, período em que os quadrinhos eram consumidos em larga escala no Brasil.
Outra importante editora, O Cruzeiro, dava preferência aos personagens infantis, entre eles Luluzinha e Bolinha. Impulsionada por um movimento nacionalista no final dos anos 50, lançou a revista Pererê, de Ziraldo Alves Pinto, o primeiro gibi exclusivo de autor nacional.
Bidu nasceu nesse contexto de aproveitamento do talento nacional. No entanto, nessa época Snoopy, criado por Charles M. Schulz, era o cãozinho que mais fazia sucesso no Brasil. Snoopy, publicado até hoje na Folha de São Paulo, é um cão filósofo. Assim como Snoopy, Bidu não fala, mas ambos fazem reflexões. A cor azul de Bidu, no entanto, pode ter sido inspirada num outro cãozinho, Banzé, filho do protagonista Vagabundo, criado em 1955 para o filme da Disney “Lady and the Tramp” (“A Dama e o Vagabundo). Banzé possuía cor cinzenta-azulada parecida com a que Bidu adotaria anos depois.
Também no ano de 1959, Bidu ganhou revista própria pela Editora Continental que, segundo Álvaro de Moya (Shazam!, 1972), tomou a decisão importante de só publicar autores nacionais.
Depois de Bidu foram criados os personagens Cebolinha e Cascão. Eles se sustentam pelas suas principais características: Cebolinha tem problemas fonoaudiólogos e Cascão tem agorafobia, ou seja medo de água, e por isso não toma banho. A personagem mais famosa de Maurício, a Mônica, foi criada em 1963, inspirada na própria filha do autor, que também teria dentes salientes, brincava com um coelhinho e teria gênio difícil. No artigo “Violência da Turma da Mônica”, de Dioclécio Luz, publicado no Observatório da Imprensa, os personagens de Mauricio de Souza podem ter sido inspirados no Universo Disney. Para esse autor, “a turma da Mônica é um retrocesso. É um monte de clichês, como era comum, principalmente, nos personagens de Walt Disney – sem opinião e naturalmente conservadores”. Para Luz, a personagem Mônica não é obsessiva como o Tio Patinhas, mas sugere que os conflitos do mundo sejam resolvidos na base da violência, postura bélica própria dos EUA. Segundo Dioclécio Luz, características dos personagens de Mauricio, “o medo de água do Cascão ou a fome de Magali, são apenas bullyings”.

(Maurício de Souza Produções - Todos os direitos reservados)

Visualmente, a Mônica de Maurício, é muito parecida com a Luluzinha. E não apenas pelo tradicional vestido vermelho. Luluzinha (“Little Lulu”) foi criada pela americana Marjorie Henderson Buel, conhecida por Marge, em 1935. No Brasil, as histórias de Lulu e do Bolinha (Tubby), outra criação de Marge, passaram a ser publicadas pela Editora O Cruzeiro em meados dos anos 50 atingindo grande popularidade. Nessa época, através da Jovem Guarda, fez sucesso uma música baseada no universo de Lulu e Bolinha. Lulu e Mônica carregam semelhanças a partir do desenho estilizado. O nariz das duas personagens, um “v” invertido, embora seja mais anguloso em Lulu, é muito parecido com o da Mônica. Lulu apresenta no cabelo três cachos marcantes e dois coques sendo que o cabelo da Mônica é constituído de cinco cachos estilizados e, no lugar dos coques da personagem americana, Mônica tem três fios rebeldes. Mônica tem dentes salientes, mesma característica de Aninha, amiga de Lulu. O personagem Cascão tem apenas um tufo de cabelos no topo da cabeça. No universo de Bolinha há também um garoto chamado Carequinha que mantém um corte radical a La Cascão. Com relação à gula, essa característica aparece tanto em Magali quanto em Bolinha. A vítima de Bullying, no universo de Marge, é sem dúvida o obeso Bolinha, que sofre todo tipo de brincadeiras e insinuações devido às suas características físicas. Bullying segundo Dioclécio Luz “é uma agressão verbal e sistemática à criança quando chamada de apelidos que a incomodam”. Na Turma do Bolinha, o Bullying também aparece nos confrontos entre as gangs da Zona Norte e da Zona Sul. Andar desacompanhado é um risco muito grande para Bolinha, pois pode ser surrado sem motivo pelos rivais. O Bullying aparece em vários personagens de Maurício sendo que a própria Mônica é vítima ao ser chamada de gorducha, dentuça e baixinha. Para Luz, “na vida real, nenhum psicólogo iria sugerir o método Mônica para resolver os problemas de Bullying. (....) No entanto, ao que parece, os adultos leitores ou pais de crianças que lêm os gibis da Mônica são condescendentes com esta prática de violência”. A justificativa, de acordo com Luz, seria o fato de Mônica ser “menina” e estar se defendendo. Esse pensamento, segundo Luz, seria um erro grave, pois a violência contra a mulher não pode ser corrigida com uma reação violenta feminina.

(Marge Productions - Todos os direitos reservados)


Marge, a criadora de Lulu e Bolinha, segundo o Almanaque Luluzinha (Ediouro/Mídia Pixel, 2011), relatou que criou os seus personagens com base nas crianças que conhecia e nas lembranças de sua própria infância. A mesma alegação é feita por Mauricio de Souza ao explicar a origem de seus personagens. Numa reportagem de Paula Dume, da Folha de São Paulo, em 27 de junho de 2006, a inspiração de Mauricio para criar seus personagens teria origem nas características de filhos, sobrinhos, parentes e amigos de infância do autor. “Cascão é o retrato do menino que eu fui”, afirmou Maurício no documentário “Biography: Mauricio de Souza”. Outras referências seriam os causos contados pelo pai e pelo avô. “Vovô era um contador de lorotas maravilhoso”, lembrou Mauricio. A avó o “enfeitiçava” com suas histórias do interior. Possivelmente daí veio a inspiração para criar o personagem Chico Bento que, positivamente, representa a cultura interiorana do povo brasileiro, mas, negativamente, recebe críticas de educadores por manter um vocabulário não condizente com o uso correto da língua Portuguesa.
A partir dos anos 90, Mauricio de Souza continuou criando novos personagens. A exemplo de Mônica e Magali, inventou outros personagens inspirados em seus filhos: Marina, a artista plástica, Do Contra, o contestador e Nimbus, o nissei. Mauricio e sua equipe criaram também a deficiente visual Dorinha e o cadeirante Luca. “A primeira foi inspirada em Dorina de Gouvêa Nowill, presidente emérita e vitalícia da Fundação que leva seu nome. Já Luca tem suas influências demarcadas pelo cantor e compositor Herbert Vianna”, informa a reportagem de Paula Dume. Os dois últimos são personagens que ajudam o aluno a ter uma nova postura diante da deficiência física.
Em Mauricio de Sousa até mesmo os personagens baseados em histórias de terror (Penadinho, Zé Vampir, Muminho etc) são politicamente corretos. No entanto existe um personagem de Mauricio segregado no universo da Turma da Mônica. É o Nicodemo, um personagem construído dentro dos conceitos do humor negro. Nicodemo veste terninho na cor preta, o cabelo dele tem o formato de dois chifres e o seu brinquedo preferido é o estilingue. Talvez seja o personagem mais destoante e, por isso, a sua utilização em sala deve ser feita com ressalvas, a menos que encarne o anti-herói.
Mesmo sendo motivo de críticas, a personagem Mônica foi nomeada Embaixadora do UNICEF em 2007 e o seu criador nomeado Escritor para crianças também do UNICEF. Em 2008, o Ministério do Turismo do Brasil nomeou Mônica como Embaixadora do turismo brasileiro. Em 2009, Mônica foi nomeada, pelo Ministério da Cultura, Embaixadora da Cultura.
Para atender ao público adolescente que consome os gibis em estilo japonês, os mangás, Mauricio de Souza criou a linha Turma da Mônica Jovem. Com traço semelhante ao dos mangás, com personagens de olhos grandes e com quadrinhos cujos efeitos dão a sensação de movimento intenso, os integrantes da Turma da Mônica cresceram e passaram a se envolver em questões próprias da adolescência: namoro, estudo, esporte e tecnologia. A iniciativa transformou-se em um sucesso editorial, lançada pela Panini Comics – Planet Manga, talvez pelo fato dos personagens buscarem um certo “amadurecimento”: a Mônica tenta controlar os nervos, Magali busca se conter diante da gula, Cascão toma banho de vez em quando e Cebolinha troca as palavras apenas quando fica nervoso. E essa iniciativa da equipe de Mauricio de Souza pode ter influenciado a Turma da Luluzinha, numa inversão agora de influências. Na esteira do sucesso da Turma da Mônica Jovem, surgiu, lançada pela Ediouro, produzida por desenhistas nacionais, a revista Luluzinha Teen e sua Turma. A receita é a mesma: apresentar os mesmos personagens da Turma da Luluzinha agora como adolescentes.
A pesquisa mostrou alguns prós e contras do aproveitamento das revistas da Turma da Mônica e da Turma da Mônica Jovem em sala de aula. É provável, no entanto, que existam mais fatores positivos do que negativos nessa proposta. Um fator positivo importante é a popularidade que os personagens mauricianos desfrutam junto ao público infantil e adolescente. Considerando que os pontos negativos desse universo são conhecidos e que podem ser trabalhados em sala de aula, no sentido de levar os alunos a uma reflexão crítica, o que parece negativo em um primeiro instante pode se transformar num momento rico de quebra de paradigmas. Talvez o mais importante seja trabalhar a questão do Bullying, que preocupa tanto os teóricos da educação na atualidade. Através dos quadrinhos, o Bullying, quando identificado nos personagens pode gerar um debate no sentido de se combater preconceitos buscando uma nova consciência a respeito desse problema.

Referências:
MOYA, Álvaro, Shazam!, Editora Perspectiva, 1972, págs. 11, 13, 47, 211, 212, 222, 226.
LUZ, Dioclécio, “Violência na Turma da Mônica”, Observatório da Imprensa, WWW.observatoriodaimprensa.com.br (23-02-2010)
DUME, Paula, “Família e Amigos inspiraram Mauricio de Souza”, Folha de S. Paulo, www1.folha.uol.com.br (27-06-2009)
SOUSA, Mauricio, “Bidu 50 Anos”, Panini Books, 2009
LULUZINHA, Almanaque, Editora Ediouro, 2011

OS ESPANTALHOS DE PORTINARI

OS ESPANTALHOS DE PORTINARI

Marcos Valério Diamantino
Aluno de Teoria da Arte, curso de Artes Visuais, UAB-UnB, Pólo de Barretos, SP



Resumo: o presente ensaio monográfico busca lançar algumas reflexões sobre a série temática “Espantalhos”, pintada por Cândido Portinari, em fases distintas de sua carreira. O ensaio procura analisar uma parte da obra, notadamente o quadro “Espantalhos”, de 1941, a partir da qual pretende-se entender o todo, ou seja, a série centrada nessa mesma temática. A pesquisa foi feita em arquivos da Internet e em livros, com o propósito de abrir campo de discussões sobre uma das mais enigmáticas produções do pintor brasileiro.

Palavras-chave: Artes Visuais, Portinari, Espantalhos

A obsessão de pintar espantalhos acompanhou o pintor Cândido Portinari em sua trajetória artística. A partir do final da década de 30, e por mais de vinte e três anos, de maneira avulsa, os quadros terminaram por compor uma série temática. O espantalho, o simulacro do humano, construído com a finalidade de espantar as aves das plantações, é uma figura comum a muitas culturas. No artigo “Espantalhos: uma Metáfora dos Sujeitos”, José Carlos Freitas, professor de Filosofia, cita que “nas Artes Plásticas, talvez ninguém tenha tido tamanha obsessão pelo espantalho como Cândido Portinari”. Nascido e criado em uma fazenda próxima a Brodósqui, cidade paulista, o menino Portinari cresceu nesse ambiente em que aparece o tradicional guardião das semeaduras e plantações. Ao contrário dos bonecos de Judas, que, na tradição católica, são malhados pela criançada no sábado de aleluia, o espantalho é intocável. Feito para afugentar os pássaros, costumava ser assustador até para as crianças. Freitas conta que espantalhos faziam parte dos pesadelos do menino Portinari e, muito provavelmente, devido a isso foram mostrados em 111 quadros do pintor. Segundo o articulista, nesses quadros o espantalho era retratado ou aparecia “como elemento constitutivo da cena”. Como as obras foram elaboradas em fases distintas da carreira de Portinari, os quadros, segundo Freitas, não apresentam uma unidade. “Às vezes comparecia em primeiro plano, preenchendo a tela, com uma plantação ao fundo. Outras vezes, compõe o cenário de cores densas e escuras, com carcaças de bois e um solo desprovido de plantas. E, em outras, acompanha crianças soltando pipas”, conclui o teórico.
Uma das obras dessa temática é o “Espantalho”, óleo sobre cartão, assinado e com data de 1941. Na pintura observa-se um espantalho constituído apenas de cabeça, em que a face está dividida em duas partes, sendo uma clara e outra escura. A parte clara é a banhada pelo sol e a escura, tecnicamente, pode representar a sombra. Tecidos esvoaçantes formam o corpo e os membros do espantalho. A figura está apoiada em uma cruz que, por sua vez, está fincada em um cenário árido com pouca vegetação e um monte ao fundo. À esquerda, nota-se, no terreiro, um galo em primeiro plano e uma curiosa ave em pleno vôo fumando cachimbo. À direita, estão mais quatro frangos. No céu, ao fundo, voando na vertical estão mais três pássaros.
Além do aspecto formal, uma análise pelo método iconológico, divulgado por Erwin Panofsky, pode ajudar na interpretação dos valores simbólicos contidos na obra. A investigação em busca de significados deve observar o contexto pessoal do artista e o momento histórico do qual faz parte. Não se deve desprezar, no entanto, o que Panofsky chama de intuição sintética, ou seja, a perspicácia do observador diante dos dados levantados. Na Cronobiografia, ou a biografia cronológica do artista, acervo do Projeto Portinari (WWW.portinari.org.br) revela-se que, a partir de 1935, o artista já é reconhecido no mercado norte-americano, notadamente pela menção honrosa ao quadro “Café”, no Carnegie Institute Pittsburgh. No Brasil, cai a República Velha, substituída pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 – 1945). A projeção de Cândido Portinari começa a ser vinculada ao novo governo, considerado ditatorial. O pintor produz importantes murais internos e desenvolve painéis no Pavilhão do Brasil em uma Feira Mundial em Nova Iorque, em 1939. Portinari, com o destaque alcançado nos EUA, acompanha as políticas de boa vizinhança entre os dois países. Não demora para que comece a receber críticas da intelectualidade brasileira. De acordo com a Cronobiografia de Portinari, em 1939, o poeta Ferreira Gullar afirma que “a pressa da nossa crítica incipiente em descobrir no Brasil um ‘mestre moderno’, guindou-o à posição de ‘Picasso Brasileiro’, o que, por outro lado, muito favoreceu a ditadura necessitada de mostrar como o Estado Novo renovava tudo. (...) O senhor Portinari não estava à altura do papel que foi levado, de boa vontade a representar”. Ainda, segundo a mesma fonte, o escritor Jorge Amado, em uma revista, também critica a ligação de Portinari com o Estado Novo que estaria promovendo uma “arte oficial”. Para Amado, a relação do poder com os artistas e intelectuais “adquire conotações mais graves no momento em que o País vive em plena ditadura”. O poeta Carlos Drummond de Andrade igualmente não se omitiu diante da situação ao afirmar que “o meio artístico e literário brasileiro vive ainda em condições de estrito municipalismo, em que temos uma política de arte, não temos uma arte”. Por outro lado, a historiadora de Arte, Ana Teresa Fabris avalia que “os quadros de Portinari contrastam com as diretrizes ideológicas do Estado”. Segundo ela “esse contraste se dá pela incidência do negro entre seus personagens, quando a raça negra era acusada de todos os males”.
É nesse contexto de polêmicas, as principais delas destacando os benefícios recebidos pelo artista Portinari do Estado Novo, que surgem as primeiras obras da série de espantalhos. É bem verdade que, em 1941, a escalada do Nazi-facismo, leva o pintor a reforçar o caráter social trágico de suas obras e Portinari filia-se ao Partido Comunista. Mas os seus detratores não perdoam nem mesmo os caminhos pelos quais a arte de Portinari enveredou. Acentua-se a crítica de que Portinari fazia uma reinterpretação do Cubismo de Picasso. Para o crítico Rodrigo Naves, no entanto, Portinari nunca deixou de ser acadêmico, mesmo quando fazia uso do Cubismo de Picasso. “O pintor de Brodósqui lançava sobre figuras mais ou menos realistas uma trama decorativa que, à maneira de fachos de luz, as recortava e lhes conferia algum dinamismo, preservando contudo sua forma natural. (...) Servia de camuflagem a uma pintura de forte teor acadêmico”, alegava Naves. Em 1944, produz a obra “Paisagem com Espantalhos e Urubus”, uma pintura a guache sobre cartão, cujo espantalho apresenta semelhanças com os desenhos que Picasso fez na obra “Guernica”.
Considerando esses fatores que segundo Panofsky são relevante na análise iconológica, pode-se intuir alguns aspectos do “Espantalho”, de 1941. Inicialmente deve-se levar em conta a simetria típica dos quadros renascentistas. Como na maioria das obras renascentistas, esse “Espantalho” traz elementos típicos do universo religioso. A começar pela cruz que está relacionada ao martírio de Jesus, ou, ao próprio sofrimento do artista, alvo de muitas críticas. O galo também é um símbolo presente no simbologia religiosa. Cristo disse a Pedro: “Antes que o galo cante, você me negará três vezes”. Á direita, os pássaros voando na vertical poderiam ser os injustiçado subindo ao reino dos Céus.
A Revista Agulha, no artigo “Cândido Portinari: Retrato do Brasil”, cita Jacob Klintowitz para quem o espantalho de Portinari, “ganha conotações transcendentais e se transforma numa das mais poderosas metáforas de nossa arte. Costuma ser carregado de dramaticidade, denso e impregnado de humanidade, idealizado ao limite do homem, elevado à condição divina, símbolo do homem sacrificado por seu amor ao próximo”. Klintowitz conclui que a maioria dos espantalhos de Portinari estão na cruz, na postura de Jesus Cristo, tornando-se “verdadeiro símbolo nacional e se constituindo de inúmeras facetas, como é próprio do simbólico”.
No artigo sobre Portinari, a Revista Agulha destaca ainda um poema do pintor, escrito, em Paris, em 1961, em que invoca e define a figura do espantalho como um Deus amoroso e acolhedor através dos seguintes versos: Espantalho, espantava as angústias, a maldição e o silêncio.
Dentro da Cronobiografia de Portinari, o jornalista Antonio Gonçalves Filho afirma que “críticos como Theon Sparudis viam em seus espantalhos, retirantes, favelados e lavradores, pouco mais que uma diluição do cubismo de Picasso”. De acordo com Gonçalves Filho, Spanudis costumava dizer que Portinari era um “acadêmico arrependido”.
O quadro “Espantalho” também pode ser analisado sob a ótica da Teoria da Arte que valoriza a questão da Recepção, em que a interpretação sobrepuja a produção, tal qual é abordada por Umberto Eco ao tratar da chamada obra aberta. O conceito é aplicado para aquelas obras que possibilitam inúmeras as interpretações. Em “A Poética da Obra Aberta”, Umberto Eco alude “à obra que se coloca intencionalmente aberta à livre interpretação do fruidor”. Para Eco, “a obra que ‘sugere’ está mais carregada de contribuições emotivas e imaginativas do interprete”. Seus significados são múltiplos e ambíguos. As coisas, na obra aberta, “não são situações a serem entendidas em seu significado literal imediato”.
O quadro “Espantalho” foi escolhido para análise devido a um elemento bem curioso de sua constituição. Trata-se da imagem do pássaro fumando cachimbo, em pleno vôo. Motivado pela importância que Panofsky dá à intuição, o autor desse artigo científico permitiu-se a tentar buscar um significado para esse símbolo. No período em que o quadro foi pintado, Portinari mantinha estreita ligação com os Estados Unidos. Identificado como um dos elos da política da boa vizinhança entre os dois países, o pintor era criticado por intelectuais brasileiros. O pássaro fumante pode ter sido uma referência ao filme “Dumbo”, de Walt Disney, produzido no mesmo ano em que o quadro de Portinari foi pintado (1941). O desenho animado, dirigido por Ben Sharpsteen, tem várias sequências clássicas, entre elas, a dos corvos folgados e brincalhões. Nessa sequência, um dos corvos, fuma e não dispensa o charuto mesmo em pleno vôo. Como os corvos são nocivos às plantações e o espantalho é aquele que os afugenta há mais um ponto em comum entre as duas obras. Possivelmente, ao fazer a referência a uma obra norte-americana, Portinari poderia estar ironizando, de uma forma enigmática, aqueles que o criticavam por ter se “americanizado”.
O que se pode intuir pelas considerações expostas nesse artigo é que a série “Espantalhos”, produzida por um longo período, pode ter sido o meio de manifestações muito pessoais de Portinari. As metodologias utilizadas para a análise dessa pintura estão adequadas à sua natureza, aberta a múltiplas interpretações. Observando a série com olhar contextualizado é possível supor que, além de seu aspecto formal, contenha significados de cunho religioso, social, político e pessoal. Apesar das críticas impostas a Portinari em sua época, mesmo diante do grande sucesso alcançado pelo pintor em vida, com uma vasta obra pictórica reconhecida nos principais centros artísticos mundiais, a finalidade desse trabalho foi destacar a profundidade de uma série, “Espantalhos”, que, por si, já é suficiente para destacar o talento desse artista brasileiro.





“Espantalhos”, Portinari, 1941

Referências:
AGULHA, Revista. “Cândido Portinari: Retrato do Brasil”, http://WWW.revista.agulha.com.br/ag48portinari.ttm
CRONOBIOGRAFIA, Projeto Portinari. http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/cronobio.pdf
ECO, Umberto. “A Poética da Obra Aberta”, Editora Perspectiva
FREITAS, José Carlos de. “Espantalhos: uma Metáfora de Sujeitos”, http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes-anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE-1648.pdf
PANOFSKY, E. “Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo da Arte na Renascença”, Ed. Perspectiva, 2ª. Edição, 1979
SINYARD, Neil. “The Best of Disney”, Twin Books, 1988

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A ABORDAGEM DO CRISTO CRUCIFICADO NA HISTÓRIA DA ARTE

UAB – UnB

Artes Visuais – Licenciatura

História das Artes Visuais

Trabalho Final

Aluno: Marcos Valério Diamantino





A ABORDAGEM DO CRISTO CRUCIFICADO NA HISTÓRIA DA ARTE



Marcos Valério Diamantino





RESUMO: É óbvio que o tema não se esgota em um ensaio como esse e requer uma pesquisa detalhada sobre a abordagem pictórica e conceitual de um momento crucial na história da humanidade não apenas no campo religioso. O presente trabalho, no entanto, numa rápida análise, pretende mostrar as diferenças do registro de uma mesma cena, a do Cristo Crucificado, na ótica dos pintores em diferentes períodos da história da arte universal.



PALAVRAS CHAVE: Artes Visuais, História das Artes, Cristo Crucificado





O surgimento do Cristianismo, no sentido religioso, ou seja, movimento de “religação” do humano e o divino, com o tempo, ao se institucionalizar, assume outras conotações passando a Igreja a influenciar o poder político, social e econômico nas sociedades em que atingiu a supremacia. Esse poder passou a influenciar também a Arte, com a Igreja transformando-se em mecenato. Se foi marcante no Império Bizantino, no Renascimento, no Românico e no Barroco, essa influência continuou, pelo menos de forma conceitual, a inspirar a produção moderna e contemporânea.

Cimabue (1240 – 1302) e Giotto Di Bondone (1266 – 1337) são pintores representativos de um período em que os motivos cristãos dominavam as artes, mas marca também, segundo o guia 501 Grandes Artistas (Editora Sextante, 2009) “a passagem da tradição bidimensional da Arte Bizantina, para o naturalismo, por meio do interesse na perspectiva e do uso de elementos clássicos, da dramaticidade e da emoção”. A obra “O Crucifixo” (1275) atribuída a Cimabue, embora com características da arte bizantina, como a falta de perspectiva, por exemplo, reflete uma “abordagem naturalista da pintura figurativa, com descrições sutis de músculos, ossos e tendões” (p.13). Alguns historiadores asseguram que Giotto foi discípulo de Cimabue.








“O Crucifixo” (1275), Cimabue, Basílica de São Domenico, Arezzo, Itália



A obra “Crucifixo” (1290), de Giotto, embora semelhante a de Cimabue, abandona as convenções da arte bizantina, ao revelar, pela primeira vez, as formas e a posição de um corpo humano real com musculatura e veias. O uso da luz de Giotto permite um claro-escuro que reforça o conceito de tridimensionalidade. De acordo com Leonardo da Vinci, antes de Giotto, todos os pintores, depois dos romanos, imitavam uns aos outros. “Giotto, depois de muito estudo, ultrapassou não somente os mestres de sua época, mas todos aqueles de muitos séculos passados”, citou Da Vinci.




“O Crucifixo”, (1290) Giotto, Têmpera e ouro sobre madeira (530 x 400 cm), Igreja Sta. Maria Novelle, Florença, Itália

Já no período renascentista, Andrea Mantegna (1431 – 1506), pintor e gravador italiano, mostra em “O Calvário”, a influência que o conceito de beleza Greco-romano imprimiu em sua obra. O drapeado nas roupas de suas figuras é influência forte do período clássico, mas a simetria da composição, a profundidade relativa e os elementos bem delineados são típicos do movimento Renascentista. Mesmo numa composição com muitos elementos, o uso da perspectiva com destaque para as figuras em primeiro plano criam um conjunto equilibrado.




“O Calvário”, (1458), Mantegna, Retábulo de São Zeno, Verona



O mestre renascentista Michelangelo deixou um desenho dentro do tradicional tema do Cristo na cruz. Trata-se do “Cristo Crucificado Vivo” (1530), criado para a poetisa Vittoria Colonna. Michelangelo recorre ao conceito clássico de beleza, a harmonia de todas as partes, e produz um Cristo Crucificado “não com o semblante de morto, como se usa comumente, mas em uma atitude de vivo, com o rosto erguido para o Pai (...) em que se vê aquele corpo abandonado, mas como vivo pela acerbo suplicio voltar a sentir e a se contorcer” (Condivil). Embora seja um desenho, está repleto dos ditames renascentistas: simetria perfeita, delineamento claro da figura, pouca profundidade e dramaticidade. No corpo desse Cristo de Michelangelo pode-se notar a preocupação pela imitação da realidade e de uma visão científica de muitos renascentistas, principalmente de Leonardo da Vinci. O historiador U. Boccioni refere-se à anatomia desenhada por Michelangelo como um “quase puramente arquitetônico”.




“Cristo Crucificado Vivo”, (1530), Michelangelo, Desenho, Museu Britânico, Londres



Porém foi Michelangelo o introdutor do Maneirismo, distorção das figuras em função da intenção do artista, que precedeu divisões na Igreja. O Barroco surge como uma nova linguagem pictórica em apoio à ascensão burguesa. Há uma exaltação maior do fervor religioso e dos sentimentos, traduzida em obras em que o clima é intensamente dramático. Há o predomínio do vertical sobre o horizontal. O artista busca libertar-se das regras do passado. Peter Paul Rubens (1577 – 1640), representante desse período pintou várias cenas do calvário de Cristo, uma dela é o tríptico “Levantamento da Cruz” (1610). A obra está impregnada de características barrocas como a falta de simetria: os corpos são amontoados com equilíbrio precário. Na página 80 de “Rubens: Grandes Mestres” (Editora Abril, 2011) refere-se a “construção em diagonal da cena, dinamicamente comprimida na estrutura central do tríptico, que potencializa o efeito dramático da ação”. Além disso, em muitos pontos os contornos das figuras escondem-se nas sombras. Há, no entanto, uma preocupação de conferir a profundidade ao cenário. A escolha de uma cena não-estereotipada envolve o espectador aumentando o impacto do ato cruel.






“O Levantamento da Cruz”, (1620), Rubens, Óleo sobre madeira, (530 x 400 cm), Museu Louvre, Paris



A pintura do gênero religioso entra em decadência no século XX, seja pela atuação das vanguardas ou pela excessiva pesquisa anterior. Uma das exceções é o trabalho do pintor espanhol surrealista Salvador Dali. Duas de suas obras são importantes para mudar os conceitos tradicionalmente ligados à cena da crucificação, típicas até mesmo no Barroco-colonial. Em “Crucificação (Corpo Hipercúbico)” (1954), Dali reúne elementos do Cubismo de outro espanhol, Pablo Picasso, para criar um cruz tridimensional flutuante. O próprio Cristo não está pregado na cruz, é um Cristo liberto e sem marcas de violência. No blog Iconacional, Washington Luiz Peixoto defende que a obra “liberta a mente dos fiéis da figura de um Cristo padecente, própria da mística medievo-barroca para uma visão cósmica moderna, sem opor-se ao Jesus humano e divino”.






“Crucificação Corpo Hipercúbico” (1954), Salvador Dalí, Óleo sobre tela (194,3 x 123,8 cm), The Metropolitan Museu of Art, New York



Outra obra marcante de Dali é “O Cristo de São João da Cruz” (1951). Destaca-se nessa pintura o ângulo de visão. Cristo é visto de cima para baixo, como se a dor de Jesus estivesse sendo observada por Deus. Do renascimento há o uso da simetria, embora numa composição baseada em triângulo e um círculo. Com essas obras diferenciadas, Dali foi alvo de críticas. “O Cristo de São João da Cruz” chegou a ser danificado por uma tijolada de um observador. Porém, ao que tudo indica, Dali afeito às imagens bizarras e oníricas, manteve o devido respeito ao que representa para os fiéis a figura de Cristo.




“O Cristo de São João da Cruz”, (1951), Salvador Dalí, Óleo sobre tela, (205 x 116 cm)

The Glasgow Art Gallery, Glasgow, Escócia



Como já foi dito, há um referencial extenso acerca desse tema: o Cristo Crucificado. Com poucos exemplos, no entanto, foi possível mostrar que, mesmo um tema cercado de religiosidade, conheceu mudanças no decorrer da história da Arte.



Referências:

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DALI. “Grandes Mestres”, Abril Coleções, 2011

HARGREAVES e VULCÃO. História das Artes 1, UAB-UnB

GIOTTO. “Grandes Mestres”, Abril Coleções”, 2011

FARTHING, Stephen. “501 Grandes Artistas”, Editora Sextante, 2009

MICHELANGELO. “Grandes Mestres”, Abril Coleções, 2011

RUBENS. “Grandes Mestres”, Abril Coleções, 2011

WIKIPEDIA, Imagens

VIEIRA, Washington Luiz Peixoto. http://iconacional.blogspot.com

domingo, 11 de dezembro de 2011

Agenda do Atelier de Artes

Nesse vídeo, estão reunidos alguns dos desenhos de observação produzidos durante as aulas, presenciais ou não, da disciplina de Atelier de Artes, do Curso de Artes Visuais, da UAB-UnB, Polo de Barretos SP.


http://youtu.be/zdk1xAPLSag