sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

"A TEMPESTADE" E A DERRADEIRA DEFESA DO DIREITO DA REALEZA

Marcos Diamantino



Se os grandes navegadores enfrentaram tempestades, Shakespeare legou ao mundo a sua “A Tempestade”, inspirada, em parte, nas obras relacionadas aos descobridores do Novo Mundo. Alguma semelhança com a América tem a ilha na qual Próspero e sua filha Miranda aportaram, depois de ser destituído do Ducado de Milão, pelo próprio irmão Antonio. Próspero pode ter encontrado nos livros os poderes mágicos com que subjuga Calibã, filho da bruxa Sicorax, que um dia dominou a ilha. Ao libertar o espírito Ariel do feitiço lançado por Sicorax, faz dele um serviçal. Com a ajuda de Ariel, espírito do mar, Próspero atrai para a ilha, o irmão usurpador, o Rei de Nápoles, outros nobres e marinheiros náufragos. Com isso, busca vingar-se da conspiração sofrida e restituir o ducado de Milão.
Segundo Fernando Rodrigues, em “A Tempestade e a Questão Colonial”, teóricos consideram a peça de Shakespeare um libelo em favor do colonialismo inglês. Próspero seria o colonizador enquanto a Calibã coube o papel de colonizado explorado. Shakespeare teria construído “A Tempestade” tendo como fonte textos voltados ao colonialismo, entre eles, o ensaio “Dos Canibais”, de Montaigne. Para Rodrigues, o que faria com que Shakespeare tomasse partido dos colonizadores foi o fato de descrever Calibã, nativo da ilha, como um vilão. O professor de Teatro da UnB, Marcus Mota, em “Calibã ou as Metáforas de Próspero” vê Calibã como “um anjo da rebelião, mas de uma rebelião desqualificada”. Seria uma liderança entre os colonizados, mas um poder enfraquecido pelas artimanhas de Próspero que consegue manter Calibã e Ariel desunidos e controlados.
No contexto da elaboração de “A Tempestade” é possível relacionar também duas obras conhecidas na Europa na época de Shakespeare. A primeira delas é “O Príncipe”, de Maquiavel. Nessa obra estão estratégias de governo que possibilitariam a Próspero dominar os habitantes da ilha. Um exemplo disso é o tratamento cruel dado a Calibã por Próspero. A justificativa desse modo de agir está na página 149 de “O Príncipe” (Tecnoprint, 1981), em que, segundo Maquiavel, “é muito mais seguro ser temido que amado”. Outra obra marcante do período é “A Utopia”, de Thomas Morus. A Utopia é uma ilha imaginada por Morus onde se estabelece a sociedade ideal, ou um “comunismo real”, segundo o Professor de Direito da USP, Mauro Brandão Lopes. É claro que o ideal utópico não parte de Próspero, mas de Gonzalo, que um dia salvou o Duque de Milão. No ato II de “A Tempestade”, Gonzalo imagina um governo suprimindo “ricos e pobres e os serviços, contratos, sucessões, questões de terra, demarcações”. Trata-se, no entanto, de mais uma questão periférica.
Além de aludir ao colonialismo, a peça de Shakespeare teria propósitos mais contundentes segundo outros teóricos. De acordo com Fernando Rodrigues, citando D.S. Kastan, em “The Duke of Milan”, há teorias que defendem as relações dinásticas como foco central da peça. O argumento de Kastan seria o de que o público a quem se destinaria a peça estaria “mais preocupado com os problemas dinásticos na Europa, em particular na Inglaterra, do que com os empreendimentos coloniais”.
Rodrigues cita que a peça foi encenada na corte, em 1613, durante as festividades do casamento da filha do Rei, Elizabeth, com Frederick, o Eleitor Palatino. Em “A Tempestade”, o par romântico é vivido pela filha de Próspero, Miranda, e o filho do Rei de Nápoles, Ferdinando. E nada é melhor para fortalecer governos do que união de famílias poderosas. Talvez para evitar melindres com a realeza inglesa, a quem a peça foi oferecida, utilizou-se o universo da nobreza italiana. De acordo com Rodrigues, uma fonte segura de Shakespeare foi “History of Italy” (1549), de William Thomas, “onde se menciona um duque de Milão, chamado Próspero, alijado do poder, e que consegue, mais tarde, reaver seu trono”.
Em “Ricardo III”, um tirano alçado, pelo sangue, à condição de monarca, encontrou trágico fim. Em “A Tempestade”, Próspero que teve o trono usurpado reconquista o poder. Há uma tendência na obra de Shakespeare em relacionar a realeza, por direito dinástico, a preceitos morais. Um bem que deve ser restituído quando tomado à força. Próspero, mesmo tendo construído um Novo Mundo, sendo o senhor dele, quis de volta o trono de Milão e, segundo os teóricos, isso “não é uma atitude de colonizador”. Em “A Tempestade”, Shakespeare talvez tenha feito a sua última defesa das pretensas virtudes da realeza.

Referências:

Shakespeare, William, “A Tempestade”, texto original
Mota, Marcus, “Calibã ou as Metáforas de Próspero”, artigo Curso Teatro UAB-UnB
Rodrigues, Fernando, “A Tempestade e a Questão Colonial”, artigo Curso Teatro UAB-UnB
Machiavelli, Nicolo, “O Príncipe”, Editora Tecnoprint, 1981
Morus, Thomas, “A Utopia”, Editora Tecnoprint, 1981
Mota, Marcus, Apresentação, Prof. Teatro UAB-UnB

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