sábado, 17 de dezembro de 2011

OS ESPANTALHOS DE PORTINARI

OS ESPANTALHOS DE PORTINARI

Marcos Valério Diamantino
Aluno de Teoria da Arte, curso de Artes Visuais, UAB-UnB, Pólo de Barretos, SP



Resumo: o presente ensaio monográfico busca lançar algumas reflexões sobre a série temática “Espantalhos”, pintada por Cândido Portinari, em fases distintas de sua carreira. O ensaio procura analisar uma parte da obra, notadamente o quadro “Espantalhos”, de 1941, a partir da qual pretende-se entender o todo, ou seja, a série centrada nessa mesma temática. A pesquisa foi feita em arquivos da Internet e em livros, com o propósito de abrir campo de discussões sobre uma das mais enigmáticas produções do pintor brasileiro.

Palavras-chave: Artes Visuais, Portinari, Espantalhos

A obsessão de pintar espantalhos acompanhou o pintor Cândido Portinari em sua trajetória artística. A partir do final da década de 30, e por mais de vinte e três anos, de maneira avulsa, os quadros terminaram por compor uma série temática. O espantalho, o simulacro do humano, construído com a finalidade de espantar as aves das plantações, é uma figura comum a muitas culturas. No artigo “Espantalhos: uma Metáfora dos Sujeitos”, José Carlos Freitas, professor de Filosofia, cita que “nas Artes Plásticas, talvez ninguém tenha tido tamanha obsessão pelo espantalho como Cândido Portinari”. Nascido e criado em uma fazenda próxima a Brodósqui, cidade paulista, o menino Portinari cresceu nesse ambiente em que aparece o tradicional guardião das semeaduras e plantações. Ao contrário dos bonecos de Judas, que, na tradição católica, são malhados pela criançada no sábado de aleluia, o espantalho é intocável. Feito para afugentar os pássaros, costumava ser assustador até para as crianças. Freitas conta que espantalhos faziam parte dos pesadelos do menino Portinari e, muito provavelmente, devido a isso foram mostrados em 111 quadros do pintor. Segundo o articulista, nesses quadros o espantalho era retratado ou aparecia “como elemento constitutivo da cena”. Como as obras foram elaboradas em fases distintas da carreira de Portinari, os quadros, segundo Freitas, não apresentam uma unidade. “Às vezes comparecia em primeiro plano, preenchendo a tela, com uma plantação ao fundo. Outras vezes, compõe o cenário de cores densas e escuras, com carcaças de bois e um solo desprovido de plantas. E, em outras, acompanha crianças soltando pipas”, conclui o teórico.
Uma das obras dessa temática é o “Espantalho”, óleo sobre cartão, assinado e com data de 1941. Na pintura observa-se um espantalho constituído apenas de cabeça, em que a face está dividida em duas partes, sendo uma clara e outra escura. A parte clara é a banhada pelo sol e a escura, tecnicamente, pode representar a sombra. Tecidos esvoaçantes formam o corpo e os membros do espantalho. A figura está apoiada em uma cruz que, por sua vez, está fincada em um cenário árido com pouca vegetação e um monte ao fundo. À esquerda, nota-se, no terreiro, um galo em primeiro plano e uma curiosa ave em pleno vôo fumando cachimbo. À direita, estão mais quatro frangos. No céu, ao fundo, voando na vertical estão mais três pássaros.
Além do aspecto formal, uma análise pelo método iconológico, divulgado por Erwin Panofsky, pode ajudar na interpretação dos valores simbólicos contidos na obra. A investigação em busca de significados deve observar o contexto pessoal do artista e o momento histórico do qual faz parte. Não se deve desprezar, no entanto, o que Panofsky chama de intuição sintética, ou seja, a perspicácia do observador diante dos dados levantados. Na Cronobiografia, ou a biografia cronológica do artista, acervo do Projeto Portinari (WWW.portinari.org.br) revela-se que, a partir de 1935, o artista já é reconhecido no mercado norte-americano, notadamente pela menção honrosa ao quadro “Café”, no Carnegie Institute Pittsburgh. No Brasil, cai a República Velha, substituída pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 – 1945). A projeção de Cândido Portinari começa a ser vinculada ao novo governo, considerado ditatorial. O pintor produz importantes murais internos e desenvolve painéis no Pavilhão do Brasil em uma Feira Mundial em Nova Iorque, em 1939. Portinari, com o destaque alcançado nos EUA, acompanha as políticas de boa vizinhança entre os dois países. Não demora para que comece a receber críticas da intelectualidade brasileira. De acordo com a Cronobiografia de Portinari, em 1939, o poeta Ferreira Gullar afirma que “a pressa da nossa crítica incipiente em descobrir no Brasil um ‘mestre moderno’, guindou-o à posição de ‘Picasso Brasileiro’, o que, por outro lado, muito favoreceu a ditadura necessitada de mostrar como o Estado Novo renovava tudo. (...) O senhor Portinari não estava à altura do papel que foi levado, de boa vontade a representar”. Ainda, segundo a mesma fonte, o escritor Jorge Amado, em uma revista, também critica a ligação de Portinari com o Estado Novo que estaria promovendo uma “arte oficial”. Para Amado, a relação do poder com os artistas e intelectuais “adquire conotações mais graves no momento em que o País vive em plena ditadura”. O poeta Carlos Drummond de Andrade igualmente não se omitiu diante da situação ao afirmar que “o meio artístico e literário brasileiro vive ainda em condições de estrito municipalismo, em que temos uma política de arte, não temos uma arte”. Por outro lado, a historiadora de Arte, Ana Teresa Fabris avalia que “os quadros de Portinari contrastam com as diretrizes ideológicas do Estado”. Segundo ela “esse contraste se dá pela incidência do negro entre seus personagens, quando a raça negra era acusada de todos os males”.
É nesse contexto de polêmicas, as principais delas destacando os benefícios recebidos pelo artista Portinari do Estado Novo, que surgem as primeiras obras da série de espantalhos. É bem verdade que, em 1941, a escalada do Nazi-facismo, leva o pintor a reforçar o caráter social trágico de suas obras e Portinari filia-se ao Partido Comunista. Mas os seus detratores não perdoam nem mesmo os caminhos pelos quais a arte de Portinari enveredou. Acentua-se a crítica de que Portinari fazia uma reinterpretação do Cubismo de Picasso. Para o crítico Rodrigo Naves, no entanto, Portinari nunca deixou de ser acadêmico, mesmo quando fazia uso do Cubismo de Picasso. “O pintor de Brodósqui lançava sobre figuras mais ou menos realistas uma trama decorativa que, à maneira de fachos de luz, as recortava e lhes conferia algum dinamismo, preservando contudo sua forma natural. (...) Servia de camuflagem a uma pintura de forte teor acadêmico”, alegava Naves. Em 1944, produz a obra “Paisagem com Espantalhos e Urubus”, uma pintura a guache sobre cartão, cujo espantalho apresenta semelhanças com os desenhos que Picasso fez na obra “Guernica”.
Considerando esses fatores que segundo Panofsky são relevante na análise iconológica, pode-se intuir alguns aspectos do “Espantalho”, de 1941. Inicialmente deve-se levar em conta a simetria típica dos quadros renascentistas. Como na maioria das obras renascentistas, esse “Espantalho” traz elementos típicos do universo religioso. A começar pela cruz que está relacionada ao martírio de Jesus, ou, ao próprio sofrimento do artista, alvo de muitas críticas. O galo também é um símbolo presente no simbologia religiosa. Cristo disse a Pedro: “Antes que o galo cante, você me negará três vezes”. Á direita, os pássaros voando na vertical poderiam ser os injustiçado subindo ao reino dos Céus.
A Revista Agulha, no artigo “Cândido Portinari: Retrato do Brasil”, cita Jacob Klintowitz para quem o espantalho de Portinari, “ganha conotações transcendentais e se transforma numa das mais poderosas metáforas de nossa arte. Costuma ser carregado de dramaticidade, denso e impregnado de humanidade, idealizado ao limite do homem, elevado à condição divina, símbolo do homem sacrificado por seu amor ao próximo”. Klintowitz conclui que a maioria dos espantalhos de Portinari estão na cruz, na postura de Jesus Cristo, tornando-se “verdadeiro símbolo nacional e se constituindo de inúmeras facetas, como é próprio do simbólico”.
No artigo sobre Portinari, a Revista Agulha destaca ainda um poema do pintor, escrito, em Paris, em 1961, em que invoca e define a figura do espantalho como um Deus amoroso e acolhedor através dos seguintes versos: Espantalho, espantava as angústias, a maldição e o silêncio.
Dentro da Cronobiografia de Portinari, o jornalista Antonio Gonçalves Filho afirma que “críticos como Theon Sparudis viam em seus espantalhos, retirantes, favelados e lavradores, pouco mais que uma diluição do cubismo de Picasso”. De acordo com Gonçalves Filho, Spanudis costumava dizer que Portinari era um “acadêmico arrependido”.
O quadro “Espantalho” também pode ser analisado sob a ótica da Teoria da Arte que valoriza a questão da Recepção, em que a interpretação sobrepuja a produção, tal qual é abordada por Umberto Eco ao tratar da chamada obra aberta. O conceito é aplicado para aquelas obras que possibilitam inúmeras as interpretações. Em “A Poética da Obra Aberta”, Umberto Eco alude “à obra que se coloca intencionalmente aberta à livre interpretação do fruidor”. Para Eco, “a obra que ‘sugere’ está mais carregada de contribuições emotivas e imaginativas do interprete”. Seus significados são múltiplos e ambíguos. As coisas, na obra aberta, “não são situações a serem entendidas em seu significado literal imediato”.
O quadro “Espantalho” foi escolhido para análise devido a um elemento bem curioso de sua constituição. Trata-se da imagem do pássaro fumando cachimbo, em pleno vôo. Motivado pela importância que Panofsky dá à intuição, o autor desse artigo científico permitiu-se a tentar buscar um significado para esse símbolo. No período em que o quadro foi pintado, Portinari mantinha estreita ligação com os Estados Unidos. Identificado como um dos elos da política da boa vizinhança entre os dois países, o pintor era criticado por intelectuais brasileiros. O pássaro fumante pode ter sido uma referência ao filme “Dumbo”, de Walt Disney, produzido no mesmo ano em que o quadro de Portinari foi pintado (1941). O desenho animado, dirigido por Ben Sharpsteen, tem várias sequências clássicas, entre elas, a dos corvos folgados e brincalhões. Nessa sequência, um dos corvos, fuma e não dispensa o charuto mesmo em pleno vôo. Como os corvos são nocivos às plantações e o espantalho é aquele que os afugenta há mais um ponto em comum entre as duas obras. Possivelmente, ao fazer a referência a uma obra norte-americana, Portinari poderia estar ironizando, de uma forma enigmática, aqueles que o criticavam por ter se “americanizado”.
O que se pode intuir pelas considerações expostas nesse artigo é que a série “Espantalhos”, produzida por um longo período, pode ter sido o meio de manifestações muito pessoais de Portinari. As metodologias utilizadas para a análise dessa pintura estão adequadas à sua natureza, aberta a múltiplas interpretações. Observando a série com olhar contextualizado é possível supor que, além de seu aspecto formal, contenha significados de cunho religioso, social, político e pessoal. Apesar das críticas impostas a Portinari em sua época, mesmo diante do grande sucesso alcançado pelo pintor em vida, com uma vasta obra pictórica reconhecida nos principais centros artísticos mundiais, a finalidade desse trabalho foi destacar a profundidade de uma série, “Espantalhos”, que, por si, já é suficiente para destacar o talento desse artista brasileiro.





“Espantalhos”, Portinari, 1941

Referências:
AGULHA, Revista. “Cândido Portinari: Retrato do Brasil”, http://WWW.revista.agulha.com.br/ag48portinari.ttm
CRONOBIOGRAFIA, Projeto Portinari. http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/cronobio.pdf
ECO, Umberto. “A Poética da Obra Aberta”, Editora Perspectiva
FREITAS, José Carlos de. “Espantalhos: uma Metáfora de Sujeitos”, http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes-anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE-1648.pdf
PANOFSKY, E. “Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo da Arte na Renascença”, Ed. Perspectiva, 2ª. Edição, 1979
SINYARD, Neil. “The Best of Disney”, Twin Books, 1988

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