sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

"RICARDO III" E O SENTIDO MORALIZADOR DE SHAKESPEARE

Marcos Diamantino



Quando o drama histórico Ricardo III, do inglês William Shakespeare, foi escrito em 1590, o italiano Nicolau Maquiavel já havia publicado a sua principal obra, O Príncipe, que data de 1532. No capítulo VIII, Maquiavel teoriza sobre aqueles que alcançaram o principado pelo crime. Segundo ele, para que atos tirânicos possam gerar confiança nos homens, “ao apoderar-se de um Estado, o conquistador deve determinar as injúrias que precisa levar a efeito, e executá-las todas de uma vez” (O Príncipe, pag. 93). Caso contrário, explica Maquiavel, o soberano “tem sempre a necessidade de estar com a faca na mão e não poderá confiar em seus súditos” (O Príncipe, pag. 94). Como é possível intuir, o texto de Maquiavel serviu não apenas para Shakespeare construir a personalidade teatral de Ricardo III, como também para explicar a derrocada do soberano inglês.
Para o teórico Alexandre Martins Vianna, em “A Desfiguração do Corpo Político em Ricardo III”, o perfil do personagem é calcado em um vilão bíblico: Herodes. Vale destacar que não só o verdadeiro Ricardo III , assim como o drama teatral baseado na vida dele e até a realidade do dramaturgo Shakespeare orbitavam na era da Cristandade. Shakespeare teria construído um drama sobre antíteses bíblicas: Ricardo III com suas maldades seria Herodes. Ao final da peça, o virtuoso vencedor, Conde de Richmond, segundo Martins Viana, seria uma alusão a Jesus, o Salvador. Seria possível até dizer que, em síntese, trata-se de uma visão maniqueísta do drama histórico: o mal e o bem facilmente identificáveis e, no caso, ocorrendo a supremacia do bem. Para Martins Viana, a vitória do Conde Richmond corresponderia à “promessa messiânica de um nova era – o triunfo de ‘Cristo’ sobre a morte”.
Em se tratando de Shakespeare, no entanto, nada pode parecer tão simples. Mesmo porque, como sugere Martins Viana, a vitória de Richmond não representou a vitória do povo. Embora servisse de modelo de “boa consciência”, o rival era também um potencial herdeiro do trono inglês. E diz a história com “H” que, ao assumir o trono, Richmond mandou eliminar muitos desafetos.
Até o 3º. Ato, Ricardo, Conde de Gloucester, consciente de que não está na linha de frente entre os pretendentes ao trono inglês, devido a origem dinástica, busca tomar o poder engendrando uma série de conspirações palacianas, traições e crimes sangrentos. “Elevado pelo sangue e pelo sangue mantido” é a frase que identificaria a estratégia do protagonista. No entanto, quando o mal, devido força da retórica persuasiva de Ricardo III, chega a ser confundido com o bem, emerge nesse ponto, através do paradoxo, o poder do texto de Shakespeare. É claro que, com a ascensão, o tirano coloca-se na posição de lobo diante do cordeiro. Mas, em um diálogo, ele não desiste enquanto não encontra argumentos que possam, por algum viés, justificar seus atos. Em um exemplo disso, após mandar matar os filhos de Isabel, os verdadeiros herdeiros ao trono inglês, Ricardo III propõe à mãe enlutada que desposando a filha dela estaria restituindo a soberania à família. Segundo o professor da UnB, Marcus Mota, descobrir-se sedutor era para Ricardo III o poder supremo. “Quando o soberano consegue transformar Ana, de viúva rancorosa a amante do homem que matou seu marido, descobre que poderia conseguir tudo”, cita Mota. Por medo ou interesse, todos obedecem a Ricardo III. Mas, ao conquistar o trono, continua exercendo um reinado de terror com traições e promessas não cumpridas, caindo no erro proposto por Maquiavel. Ao não conseguir dar um basta à sua sede de poder e vingança, perde a confiança até dos seus súditos.
A ascensão criminosa/demoníaca de Ricardo, enquanto Duque de Gloucester, proposta por Shakeaspeare, é analisada por Martins Viana como resposta aos governos anteriores de Henrique VI, considerado um “monarca angélico” e ao governo de Eduardo IV, considerado “lascivo e soberbo”. A derrota imposta ao tirano supremo Ricardo III pelo conquistador Conde de Richmond, embora o segundo representasse o Cristo Salvador, seria a vitória do meio-termo. E aí, mais uma vez, conceitos de Maquiavel são usados pelo autor inglês para delinear o soberano ideal. Nesse sentido, empregando vários paradoxos, a peça Ricardo III é moralizadora, quando leva a crer na dialética da busca da perfeição moral a partir de erros.


Referências:

Shakespeare, William, Ricardo III, texto completo

Machiavelli, Nícolo, O Príncipe, Ediouro, 1982

Maquiavel, Nicolau, Biografia e obras, Wikipédia

Shakeaspera, William, Biografia e obras, Wikipédia

Vianna, Alexandre Martins, “A Desfiguração do Corpo Político de Ricardo III”, HT1 UAB-UnB

Mota, Marcus, UAB-UnB

Nenhum comentário:

Postar um comentário