sábado, 5 de janeiro de 2013

QUADRINHOS: VIVÊNCIAS E UM PROJETO DE ENSINO

O que levou um ex-doutorando de 24 anos a matar 12 pessoas e ferir outras 58 no interior de um cinema dos EUA, em julho de 2012? O criminoso agiu durante a estreia do filme “Batman – O Cavaleiro Ressurge”. Quando foi preso, usava tintura vermelha no cabelo e declarou que era o Coringa, o inimigo do Cruzado de Capa. O crime hediondo deixou numa saia justa aqueles que defendem a utilização das histórias em quadrinhos no ensino. Afinal, o filme era baseado no universo das HQs. Batman foi criado por Bob Kane em 1939. Com o tempo, os temas ficaram mais adultos. Nos anos 80, em “A Piada Mortal”, de Alan Moore, o Homem Morcego enfrenta o Coringa e se revela tão transtornado psicologicamente quanto o seu rival. No cinema, o Coringa aparece em pelo menos três oportunidades. Nos anos 60, no Batman adaptado da série de TV, o Coringa foi transformado numa caricatura pelo ator Cesar Romero. Em 1989, no Batman de Tim Burton, o Coringa rouba a cena, interpretado por Jack Nicholson que encarnou um vilão cruel que tripudia ao som das músicas de Prince. A melhor representação da mente doentia do Coringa, no entanto, talvez tenha sido feita pelo ator Heath Ledger, em “Batman – Cavaleiro das Trevas”, dirigido em 2008 por Christopher Nolan. Nesse mesmo ano, Ledger morreu devido a uma possível intoxicação por remédios prescritos. Nos anos 50 e 60, os quadrinhos foram acusados de serem nocivos à formação de crianças e jovens. Criou-se um Código de Ética, com regras que orientavam a produção de gibis por conta das críticas feitas pelo psiquiatra Fredrick Werthan, autor de “A Sedução dos Inocentes”. Entre outras coisas, Werthan afirmava que as histórias de Batman e Robin poderiam incentivar o homossexualismo. No Brasil, as HQs, notadamente as de Terror, não podiam ser vendidas para menores de 18 anos. Os pais proibiam a leitura dos gibis. Lembro que no 3º. Ano do grupo, uma professora apreendeu uma pilha de gibis que levei à escola e nunca mais a devolveu. Na relação quadrinhos/cinema, é fato que os personagens de gibi salvaram a indústria cinematográfica norte-americana a partir dos anos 70 com a volta às telas do Superman, interpretado Christopher Reeve. Desde os primórdios do cinema, heróis das HQs eram convocados para as telas, mas hoje são maior fonte de renda dos estúdios. Não é à toa que produzem tantas sequências de filmes de super-heróis. Os heróis do gibi ficaram mais violentos quando transpostos para as telas. Mas em plena era da informação é impossível imaginar que pessoas ainda confundam ficção com realidade. Fica difícil aceitar os motivos que levaram um jovem esclarecido, em nome de um vilão de HQ, a promover um massacre. São muitos os educadores que defendem o uso dos quadrinhos, a chamada Arte Seqüencial, no ensino. Acreditam na visualidade proporcionada pelas HQs como forma de auxiliar os leitores na reflexão, expressão e crítica. Os quadrinhos ajudam na retenção de conhecimentos em disciplinas como Geografia, História, Matemática, Ciências, Idiomas, Artes e outras mais. Quadrinhos incentivam a leitura. Quadrinhos melhoram o vocabulário do leitor. Exemplos disso estão no livro “Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula” (Editora Contexto, 2009), dos autores Ângela Rama, Waldomiro Vergueiro, Alexandre Barbosa, Paulo Ramos e Túlio Vilela. Quadrinhos do Tintim, do belga Hergé, proporcionam uma viagem pela geografia mundial. Algumas histórias do Pato Donald, produzidas pelo americano Carl Barks, são baseadas em personagens mitológicos. Harold Foster, com o Príncipe Valente, revela facetas da vida em uma Idade Média idealizada. Sargento Rock, de Joe Kubert, mostra a 2ª. Guerra vista pelos americanos, assim como em “Maus”, de Art Spielgelman, o conflito é mostrado pela ótica do judeu vítima do Nazismo. Avanços da ciência, como aviões a jato, foram antecipados nas HQs de Flash Gordon, criadas por Alex Raymond. Direitos Humanos, muito em baixa na América Latina nos anos 60 e 70, foram discutidos nas tiras de Mafalda, uma criança contestadora, criada pelo argentino Quino. Até mesmo os erros e anacronismos contidos nas HQs podem ser motivo de debates. É preciso que educadores sejam capacitados para utilizar os quadrinhos como fonte de ensino. Alunos também precisam ser alfabetizados na linguagem das HQs. Talvez pelo sucesso editorial, os personagens de Maurício de Souza sejam os mais lembrados quando se fala em levar os gibis para as escolas. Aliás, o universo mauriciano deu uma grande contribuição à educação através de projetos especiais, notadamente no suplemento Folhinha de São Paulo iniciado nos anos 70. Mas a utilização dos gibis da Mônica em sala de aula requer acompanhamento e orientação. Ou será que a Mônica, quando distribui coelhadas, não está incentivando a violência? Puxando pela memória, as HQs estiveram presentes em várias etapas de minha formação. Minha avó assinava a revista O Cruzeiro que trazia a arte de Péricles Maranhão, criador do personagem “Amigo da Onça”. Um vizinho colecionava os gibis do “Pererê”, do Ziraldo que eu folheava avidamente (Pererê, disfarçado de historinha, era na verdade porta-voz da geração contestadora dos anos 60). E também tive acesso ao acervo de um primo que colecionava Mickey e Tio Patinhas, da Editora Abril. Tempos depois conheci às críticas ao mundo Disney no livro “Para Ler o Pato Donald”, dos chilenos Ariel Dorfman e Armand Matellard. Segundo esses autores no Universo Disney não existe amor e tudo é movido pela recompensa monetária. Gostava de redigir “composições” envolvendo índios brasileiros e bichos da nossa fauna. Tinha um desejo muito grande de desenhar aquilo tudo. Maravilhava-me um por do sol no campo e, em minhas garatujas, acreditava representar aquele cenário. Penso que não devemos julgar o desenho de uma criança. A criança não se liga a imagens estereotipadas como os adultos e uma crítica negativa ao desenho infantil poderá bloquear a expressão dela através da visualidade. Em toda fase há uma evolução estética. Mas, conceitualmente, a garatuja pode ter muito significado para a criança que a produz. Talvez meu primeiro gibi não tenha sido lido, mas visto. Um gibi que marcou muito a minha infância foi a Série Lança de Prata do personagem Tarzan, lançada pela Editora Brasil América, EBAL, em 1968. Eu ainda nem sabia ler, mas consegui entender, através da sequência dos quadrinhos, aquela história desenhada por Russ Manning que possuía um traço elegante e limpo. A série apresentava a saga de Tarzan, conforme escrita por Edgar Rice Burroughs. Para ter um acesso maior a novas histórias, as crianças aproveitavam para trocar os gibis durante as matinês do Cine Centenário e do Cine Barretos. Como os cinemas ficavam próximos, era possível ficar zanzando entre um e outro em busca das melhores trocas. No ginásio criei um personagem parecido com o Zorro, pois vivia no Velho Oeste e também usava máscara. Chamava-se Killer. Lembro que desenhei vários gibizinhos em folha de caderno. Depois presenteava os colegas com esses gibis. Não guardei nenhum. Quando um professor de Geografia pediu para fazermos um trabalho, fiz o meu em forma de HQ. O professor achou interessante e me deu uma boa nota. Não havia completado 13 anos quando enviei uma história em forma de tira para o jornal Notícias Populares do grupo Folha de São Paulo. Era um jornal policial sensacionalista. Mas tinha uma interessante seção de quadrinhos com autores nacionais. Considero hoje que meus primeiros desenhos eram bem primários sob o ponto de vista da representatividade estereotipada. Os editores do NP, no entanto, publicaram várias histórias minhas que retratavam um pouco do universo do entretenimento da época, dominado pelos filmes italianos de faroeste e épicos. Minha última história, publicada por eles, foi original e se chamava “Super Bobão”. Era a história espantosa de um cara que sofre um mal súbito e acredita que pariu um bebê quando acorda operado no hospital. O jornal aproveitou para fazer uma gozação comigo. Como havia mandado um retrato 3x4, o jornal o usou na capa. Sobre minha foto colocou o título Super Bobão e anunciou a estreia. Não ganhava nada, a não ser a satisfação de ir à banca e ver meu trabalho em um jornal estadual. Outra satisfação foi ter em fevereiro de 1975, uma de minhas criações publicada pela Folhinha de São Paulo, suplemento infantil editado até hoje pela Folha. Era uma arte que foi publicada em cores pelo jornal e contava uma aventura de uma dupla de náufragos Naufra e Gil. Na época fazia sucesso a música “Tragédia no Fundo do Mar“ (Assassinato do Camarão), do grupo Originais Samba, e a história mostrava os náufragos acompanhando o féretro do Camarão. Animado encaminhei ao jornal O Diário, de Barretos, SP, uma HQ em forma de tiras que contava o drama de mergulhadores catadores de pérolas. Se não me engano, a história chamava-se “Pérolas do Infortúnio”, baseado em um conteúdo encontrado na Enciclopédia Ilustrada Trópico, muito popular na época. O diretor do jornal explicou-me que, por questões técnicas, a história não poderia ser publicada. Mas saí da entrevista com um cargo de cronista que mantive por uns três anos. Escrevia a crônica “Dramas e Tramas”. E através das crônicas desfilava um punhado de histórias de todos os gêneros. Os temas desenvolvia a partir dos filmes que via e dos gibis e livros que lia... Algumas crônicas eram originais e contavam um pouco da minha vida: brincadeiras de infância, casos passados na escola, causos contados pelos mais velhos e até as minhas primeiras paixões de adolescente. Em 1979 entrei na faculdade e aí veio um hiato... Não que no curso de Ciências Sociais, da UNESP, em Araraquara, que freqüentei por um ano, não continuasse convivendo com os quadrinhos. Foi em forma de gibi que li o Manifesto Comunista, uma publicação um tanto quanto perigosa em um Pais ainda governado pela Ditadura Militar. Foi, no entanto, o ano que mais influenciou na minha formação. Pude fazer uma reflexão sobre a realidade política e social de então.
Em 1981 me candidatei a uma vaga de Diretor de Arte numa agência de publicidade de Ribeirão Preto, SP. O dono da agência disse que eu não tinha muita afinidade com desenho, mas gostou do meu texto e saí da entrevista com o cargo de Redator Publicitário. Mas nas agências, enquanto fazia textos comerciais pude conviver diariamente com a Arte. Um dos Diretores de Arte, Eduardo Maciel, também era apaixonado por quadrinhos. Fiz dupla de criação com ele e durante a produção de anúncios, também planejamos algumas ações na área dos quadrinhos. Eu fazia os roteiros e ele os desenhos. Pensávamos em criar um super-herói à moda antiga e surgiu o Mister Sonho. O universo do personagem era o onírico e ele conseguia entrar nos sonhos das pessoas para ajudá-las. Chegamos a produzir uma edição de 68 páginas e levamos a proposta para uma grande editora em São Paulo, mas o projeto não vingou. Em 1989, bolamos um personagem infantil: o Peãozinho. Era um garotinho apaixonado pelo mundo do rodeio. Voltamos a São Paulo para apresentar o trabalho em outra grande editora e fomos recebidos pelo Primaggio Mantovi, o criador do personagem Sacarrolha, um palhaço simpático que teve revista própria nos anos 70. Sobre o Peãozinho, Mantovi assim se manifestou em uma carta datada de 18 de janeiro de 1990: “a idéia é simpática e até original (o caipira já é explorado em histórias em quadrinhos infantis, mas o sertanejo não) porém, como para qualquer personagem, vai haver a necessidade de se criar para o Peãozinho um universo forte. Resumindo: com um bom trabalho de criação (texto e arte), reforçado por uma forte campanha de lançamento, o personagem pode dar certo”. Mas a Editora não quis desenvolver o projeto e engavetamos o Peãozinho. No início dos anos 90, os filmes de luta faziam a alegria dos donos de locadoras e apostamos em um personagem lutador de Kickboxer. Era o “Joe Kickboxer” que tinha as feições de um astro da época, Steven Seagal, hoje um dos incentivadores do lutador Anderson Silva. Oferecemos para algumas editoras, mas sem resultado positivo. Naquela época, os quadrinhos enfrentavam uma grande crise e as editoras não estavam investindo em novos personagens. Pelo menos era essa a desculpa que davam pra gente. Já estávamos desistindo quando o Eduardo conseguiu levantar um patrocínio vindo de um parente dele. O Eduardo tinha um personagem chamado Beguinha. Era um índio brasileiro de uma aldeia já invadida pela tecnologia. Eduardo Maciel me convidou para fazer os roteiros das histórias e voltamos a acreditar no sonho. O gibi do Beguinha foi produzido nos moldes das revistinhas do Maurício de Souza. Eduardo procurou a Gráfica São Francisco de Ribeirão Preto. O diretor da gráfica nunca havia feito um gibi antes, mas topou o desafio. E editou o Beguinha no mesmo padrão do gibi da Mônica. Estou citando isso porque muitos anos depois, a São Francisco é hoje a gráfica que imprime todos os gibis do Maurício de Souza. Quanto ao Beguinha, lançamos três números com distribuição nacional pela Chinaglia. Recebíamos cartas dos leitores com mensagens de apoio, mas infelizmente, o gibi não vendeu o suficiente e acabou. Os encalhes foram enviados para a casa do Eduardo e lotaram os cômodos do imóvel dele. Ele não teve paciência para recolocar os gibis no mercado e vendeu tudo como papel para reciclagem. Depois dessa experiência investiu em desenhos e animação por computação gráfica e hoje tem um bom estúdio em Ribeirão Preto. Por volta do ano 2000 levei a proposta ao Jornal O Diário de Barretos de publicar uma tira política diária. E aí nasceram os personagens Gê e Tom, publicados por quase 10 anos. O visual de Gê e Tom foi inspirado no da dupla Naufra e Gil criada em 1975. Até hoje alguns leitores me cobram a volta de Gê e Tom. Eles eram o tipo de político que hoje não existe mais, ou seja, o político corrupto. Cursando atualmente Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade de Brasília, meu sonho, como futuro educador, é utilizar os quadrinhos como ferramenta que possibilite ao aluno expressar-se através da visualidade. Espero realizar esse sonho. Marcos Diamantino Imagens: Ilustração da capa do Album de Quadrinhos "Leve o Casaco, Bill", de Marcos Diamantino e detalhe de um dos desenhos do gibi.

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